LIVRO: “a máquina de fazer
espanhóis”,
de valter hugo mãe
Publicado por: Porto Editora
1ª edição: Janeiro de 2010
19ª edição (1ª na Porto
Editora): Agosto de 2016
Ao contrário de mim, o meu pai
nunca foi homem dado a leituras. Os livros que povoam uma ou outra estante lá
de casa não passam de ornamentos, pelo que seria de todo improvável
que, dobrados já os 80, se atirasse agora ao livro que aqui me traz (a este ou a outro qualquer). Mas se porventura o fizesse,
teria dito, a espaços e no final, com a habitual energia na voz e, quem sabe, uma
gargalhada discreta: “Está bem caçado!” O mesmo teria dito o pai dele,
até mesmo o avô, meu bisavô, portanto, de quem não conheço sequer o nome. O mesmo digo eu, que li “a máquina de fazer espanhóis”, o quarto romance de Valter Hugo Mãe, com uma avidez prazerosa e sempre, mas sempre, com um enorme sorriso.
Evoco o “está bem caçado”
porque é daquelas expressões que se “institucionalizaram” na nossa família. Algo divertido e que faz sentido é isso mesmo para os
outros; para nós “está bem caçado”. E como esta, muitas outras
palavras ou expressões - “albirrar”, “recaxia”, “borzegui”,
“até choras” -, caídas em desuso na linguagem corrente mas que
sobrevivem num contexto mais íntimo. E o “está bem caçado”
também porque, estou em crer, pertence à mesma família de um conjunto de expressões, a convocar outras tantas situações descritas neste livro, que não
terão surgido de livre e espontânea vontade, antes farão parte duma certa herança “familiar”, coisas entendidas pelo autor aos seus
ancestrais, num núcleo particularmente chegado.
Divertido e pleno de sentido é,
pois, “a máquina de fazer espanhóis”, cuja acção decorre quase
inteiramente no espaço dum lar da terceira idade e que junta uma
catrefada de velhos na condição de protagonistas, confrontando-os
com as suas tendências e manias, as suas birras e provocações, a
sua casmurrice, os seus sofismas. Mas também com uma cumplicidade, uma ternura e uma forma única de ver o mundo que os torna realmente especiais, merecedores de toda a nossa atenção e do mais elevado respeito. A grande proeza de Valter Hugo Mãe neste livro é a
de, com o devido pudor, revelar princípios e condições naquilo
que podem ter de mais belo ou hostil, violento até. Fá-lo,
convocando, em simultâneo, passado e futuro, ao encontro das marcas
identitárias duma geração no fim da linha, afinal o “produto acabado” da nossa própria identidade enquanto indivíduos ou parte dum todo social.
Em “a máquina de fazer espanhóis”, a nostalgia e a ternura passeiam de mãos dadas com a crueldade
e a revolta, faces opostas de iguais moedas, reais,
implacáveis, premonitórias. É um livro onde a ficção
adquire um cunho de verdade incómoda, agigantando as pequenas coisas
de outrora e relativizando um presente vergado ao peso da
incapacidade crescente e da inevitável dependência, como se, confrontando a morte, só a memória pregressa valesse no
somatório da vida.

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