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quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

INSTALAÇÃO: “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo” | Lisa Barbosa



INSTALAÇÃO: “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo”,
de Lisa Barbosa
Curadoria | Lisa Barbosa, Patrícia Sarrico
XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025
Estação de Aveiro
18 Out 2025 > 18 Jan 2026

Vestido de branco e pintado de azulejos, o edifício da antiga Estação dos Caminhos de Ferro de Aveiro acolhe, por estes dias, “Heliotropismo: Do Centro Negro que é Tudo”, instalação de Lisa Barbosa que se integra na XVII Bienal Internacional de Cerâmica Artística de Aveiro 2025. Numa sala envolta em penumbra, um conjunto de girassóis atrai o olhar e a reflexão do visitante. A artista parte das memórias de infância, dos lugares campestres, do barro, para reconstruir um território onde gesto e emoção se fixam e desmultiplicam. Aqui, cada pétala endurecida pelo fogo guarda a vulnerabilidade daquilo que nasce para desaparecer, lembrando-nos que a beleza é sempre, tal como a flor, uma aparição fugaz, uma forma de luz ancorada na experiência humana. Nesse encontro entre tradição e escultura contemporânea, a flor não é ornamento, antes veículo: Condensa afectos, traduz ausências, transporta o peso simbólico de celebrações, lutos e renascimentos. Como quem reaviva um vocabulário esquecido, Lisa Barbosa convoca a flor como testemunho da nossa busca insistente pelo belo, uma busca que, longe de ser superficial, é a forma mais honesta de manter vivo aquilo que em nós insiste em florescer.

Núcleo visceral da instalação, o campo de girassóis negros prolonga esta reflexão e desloca-a para o território da comunidade e do cuidado. A cor do carvão, onde tudo termina e tudo recomeça, acolhe hastes firmes que perseguem a luz sabendo que só o confronto da sombra lhes permite erguer-se e perseverar. A artista reinscreve o heliotropismo como metáfora ética, dizendo-nos que crescer é procurar a claridade, mas também reconhecer o lado oculto que sustenta o movimento. Na rigidez suspensa das flores, há um eco de brisa que perpassa, fricção que desinquieta e se oferece ao olhar para desmontar certezas e guiar o espectador aos lugares da sua própria interioridade. O amarelo vibrante que vemos com a imaginação no topo de cada uma das flores ressoa como promessa de alegria, de partilha, de pertença, enquanto o negro que se impõe ao nosso olhar devolve à obra a sua dimensão cíclica e trágica. Aqui, cada caule é uma biografia em construção no amparo das raízes entrelaçadas, prova de que a flor só se cumpre plenamente quando é, também, comunidade.

A instalação avança então para o terreno íntimo da semente, esse lugar onde origem, aposta e risco coabitam. Em cada girassol, Lisa Barbosa expõe a fragilidade das relações humanas, o semear no outro o que temos a mais, mas também o que nos falta. Ali, as sementes repousam sobre um solo incapaz de nutrir, espelhando a tentação de investir afectos em terras inférteis, num gesto de devoção cega que desfaz o equilíbrio do dar e receber. A cerâmica, ao fixar esse instante de falha e de esperança, afirma a semente como território ético. Germinar implica humildade, aceitar a espera, resistir com coragem. A artista utiliza a cerâmica para materializar esse instante crítico, tornando visível o que normalmente permanece abstracto: A escolha dos solos afectivos onde investimos, a linha ténue entre generosidade e devoção cega, a exaustão de quem se oferece de forma desmedida. As sementes pousam sobre um solo de carvão estéril, imagem que sintetiza o perigo de esquecer o próprio centro e de ignorar as necessidades internas. Ao reencenar este ciclo com precisão escultórica, Lisa Barbosa amplia o alcance ético da instalação: O crescimento emocional não depende apenas da luz que procuramos, mas da lucidez com que escolhemos onde semear e da coragem de reconhecer terrenos estéreis.

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