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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

CINEMA: “As Meninas Exemplares” | João Botelho



CINEMA: “As Meninas Exemplares”
Realização | João Botelho
Argumento | João Botelho, Leonor Pinhão
Fotografia | João Ribeiro
Montagem | João Braz
Interpretação | Rita Durão, Catarina Wallenstein, Crista Alfaiate, Joana Botelho, Victoria Guerra, Rita Blanco, Leonor Silveira, João Pedro Vaz, Margarida Marinho, António Durães, Ana Bustorff, Rita Rocha Silva, Marcello Urgeghe, Cláudio da Silva, Rui Morisson
Produção | Alexandre Oliveira
Portugal | 2025 | Comédia, Fantasia | 86 Minutos | Maiores de 12 Anos
Cinema Batalha
05 Dez 2025 | sex | 21:15


“Sabemos tudo, desde o momento em que nascemos. Violência. Raiva. Desespero. É por isso que os bebés gritam.”
Paula Rego

Os indefectíveis de João Botelho sabem reconhecer no seu cinema um anti-naturalismo radical que transforma cada filme num dispositivo de artifício assumido, onde a teatralidade, a pintura e a ópera se tornam motores de sentido. Sobretudo em obras mais recentes, como “Filme do Desassossego”, “Os Maias”, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” ou “Um Filme em Forma de Assim”, Botelho apoia-se fortemente em cenários pintados, criando “tableaux” geométricos que desconstroem a ilusão referencial e expõem o espectáculo social como construção performativa. A sua realização, recheada de re-enquadramentos, naturezas-mortas, imagens suspensas e jogos de representação dentro da representação, funciona como comentário crítico ao próprio acto de ver, aproximando o cinema de um manifesto contra o naturalismo, pela afirmação da ficção como verdade emocional. Ao mesmo tempo, o realizador articula essa estilização com a vitalidade literária das adaptações, preservando tensões históricas e morais, equilibrando sátira e paixão, distância e fervor, e projectando o passado como espelho da contemporaneidade. O resultado é um cinema simultaneamente austero e exuberante, erudito e sensorial, capaz de subverter o drama de costumes através de um artifício tão evidente quanto paradoxalmente imersivo.

Esta sessão no Batalha contou com a presença do realizador e teve vários momentos a todos os títulos interessantes. Desde logo a vontade expressa de abandonar os circuitos comerciais, as salas cada vez mais devotadas à fruição de pipocas e coca-colas e que fazem da sétima arte um pretexto para o consumismo. Depois a grande verdade do cinema que são os espectadores: “As suas reacções”, e cito de cor as palavras de João Botelho, “a sua emoção, o seu tédio, as suas gargalhadas, o adormecer durante a sessão, isso é que é verdadeiro. Tudo o mais é falso, e isto as pessoas ainda não perceberam”. Enfim - e sobretudo - “As Meninas Exemplares”, esse exercício exuberante de cinema que tem numa conversa em Veneza com Paula Rego um dos seus momentos mais significativos, a convergência de pontos de vista em relação à obra da Condessa de Ségur a afirmar uma colaboração da pintora com o realizador ao nível dos quadros, o que só em parte se cumpriu graças à itinerância de uma exposição de desenhos de Paula Rego que acompanha as projecções do filme, já que entretanto a pintora faleceu. Ficam, enfim, as imagens sublimes de um exercício onde a imaginação nunca se impõe à realidade do texto, antes o enriquece com a “verdade” única do cinema de João Botelho.

Em “As Meninas Exemplares”, o realizador reinscreve a pedagogia moral da Condessa de Ségur numa gramática visual altamente composta, mas é precisamente essa estilização que torna visível o núcleo disciplinar da narrativa e que permite aproximar o filme do universo de Paula Rego. Tal como a artista desmonta a doçura aparente dos contos infantis para revelar o seu reverso autoritário, também o filme expõe a rigidez do modelo educativo de oitocentos. A coreografia exacta, a teatralidade dos quadros, a contenção afectiva das personagens, deixam entrever a violência subtil que acompanha a formação das meninas “virtuosas”. Se João Botelho tende por vezes a admirar demasiado o artifício, correndo o risco de suavizar o impacto crítico da história, a leitura em paralelo com Paula Rego permite recuperar a dimensão iminentemente política do seu cinema: o que em Ségur se apresenta como lição edificante, no olhar do realizador - e potencialmente no do espectador - transforma-se num território de tensão, resistência e desejo reprimido. Assim, o filme beneficia quando visto como peça que, ainda que timidamente, abre fendas no edifício moralizante original, oferecendo matéria para uma apreciação mais objectiva. Ele é menos a celebração de uma infância exemplar e mais um exercício de observação crítica sobre as estruturas de poder que moldam, domesticam e silenciam tudo à sua volta.

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