TEATRO: “Uma Brancura Luminosa”
Texto | Jon Fosse
Adaptação e encenação | Sandra Barata Belo
Cenografia | Rui Francisco
Música | Filho da Mãe
Movimento | Cláudia Nóvoa
Figurinos e adereços | Pilar Peres
Interpretação | Ricardo Pereira e Sandra Barata Belo
Produção | Beladona
80 Minutos | Maiores de 12 Anos
Centro de Artes e Espectáculos de Vale de Cambra
06 Dez 2025 | sab | 21:30
Começo com uma referência ao Centro de Artes e Espectáculos de Vale de Cambra, um equipamento muito recente, de linhas modernas e harmoniosas, uma sala pequena mas muito confortável e uma equipa de colaboradores particularmente simpática e disponível. Parabéns, Vale de Cambra, por este magnífico lugar de cultura. Mas vamos à peça. Em “Uma Brancura Luminosa”, Sandra Barata Belo enfrenta com coragem o desafio de transpor para cena o universo rarefeito e quase litúrgico de Jon Fosse, um território onde o silêncio pesa tanto quanto a palavra. A encenação aposta num dispositivo cénico versátil, com assinatura de Rui Francisco, assente na presença de volumes maleáveis, tecidos e superfícies que se desdobram em sombras, véus e falsas profundidades. Esta ambição visual pretende replicar o labirinto interior do protagonista, no seu caminhar hesitante pela floresta, mas nem sempre resulta com a clareza desejada. Há momentos em que o aparato cénico, em vez de amplificar o desconcerto existencial do texto, parece acrescentar ruído, como se baralhasse mais do que iluminasse. Apesar de um bom número de momentos de fulgor visual, o potencial do dispositivo nem sempre encontra um equilíbrio entre poesia e funcionalidade, desviando o olhar do público do essencial: A tensão íntima do homem que se perde para se reencontrar.
A interpretação de Ricardo Pereira, que sustenta a maior parte da peça, é decisiva para aceder ao centro emocional desta narrativa de desvio e transcendência. No entanto, a dicção irregular e uma colocação de voz frequentemente deficiente comprometeram a fruição de um texto que exige precisamente o contrário: precisão, subtileza e a capacidade de fazer das palavras um gesto interior. Num espetáculo em que a fronteira entre pensamento e fala é tão ténue, perder trechos do discurso é particularmente frustrante. Por várias vezes, o timbre afundado ou o fraseado pouco articulado impediram o público de acompanhar o fio existencial que Jon Fosse tão habilmente constrói, esse fluxo contínuo onde passado, presente e futuro se entrelaçam. A encenação de Sandra Barata Belo aposta na proximidade emocional, mas essa intimidade depende de um verbo nítido, capaz de guiar o espectador pelo labirinto mental da personagem. A fragilidade vocal do actor criou uma distância involuntária, quebrando a imersão que a peça tanto procura. E é uma pena, porque quando o actor encontra o tom certo - sobretudo nos momentos de maior exaustão ou perplexidade - a personagem adquire densidade, revelando na respiração pesada e na pausa prolongada a vertigem de quem caminha à beira do fim.
Apesar dos embaraços cénicos e interpretativos, “Uma Brancura Luminosa” evidencia a sensibilidade de Sandra Barata Belo ao captar o espírito ambíguo da obra de Fosse, onde o real se dissolve em espectro e onde cada gesto parece existir num limiar entre presença e ausência. A “brancura luminosa” que o protagonista vislumbra, essa figura ou energia que o acolhe num momento de cansaço extremo, surge aqui como metáfora de entrega, transição e possível renascimento. A encenação procura dar corpo a essa dimensão quase espiritual através de elementos visuais mutáveis, embora nem sempre alcance a simplicidade que o texto sugere. Ainda assim, há coerência na intenção: A peça quer que o público circule entre a dúvida e a revelação, entre a opacidade e a claridade, entre o medo e uma espécie de serenidade oculta. E é precisamente nestas zonas intermédias que o espectáculo encontra a sua força, sobretudo quando a música, a luz e o ritmo abrandado se conjugam na criação de um espaço contemplativo. Mesmo com falhas, a peça oferece momentos de genuína beleza, convocando questões sobre o abandono, a solidão e a esperança que ressoam para lá da sala. No final, aquilo que permanece não é a densidade dos adereços nem a falha circunstancial da palavra, mas a sensação de um caminho aberto, misterioso, inquietante e, tal como a escrita de Fosse, capaz de tocar o que há de mais silencioso em nós.
[Foto: Manuel Vitoriano | Ovar/Cultura https://www.facebook.com/ovarcultura]
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