TEATRO: “Victor ou as Crianças no Poder”,
de Roger Vitrac
Tradução | Jorge Silva Melo
Encenação | João Pedro Mamede
Cenografia | Bruno Bogarim
Figurinos | Sara Coimbra Loureiro
Interpretação | Henrique Gil, André Pardal, Ana Amaral, Catarina Rôlo Salgueiro, Isabel Costa, Rafael Gomes, Mia Tomé, Inês Reis, Leonardo Garibaldi, Leonor Buescu, António Simão
Produção | Os Possessos, Artistas Unidos
120 Minutos | Maiores de 16 Anos
Teatro Carlos Alberto
13 Abr 2025 | dom | 16:00
Tudo acontece num único serão, entre as oito e a meia-noite, no apartamento dos Paumelles, em Paris. É dia 12 de setembro de 1909, Victor faz nove anos e declara com estrondo: “Não espero nem mais um ano para ser adulto. Estou decidido a ser alguém e é já!” Escrita e estreada entre guerras, em 1928, “Victor ou as Crianças no Poder” reporta-se ao período anterior à Grande Guerra. A burguesia pouco se distrai da sua obsessão com a guerra (ou fantasia?), seja isso uma sombra de anteriores conflitos ou o prenúncio (os preliminares?) de sucessivas tragédias que se avizinham, levando-se sempre muito a sério. O som é um elemento que sabe do deslizar da farsa para o drama, coisa que Lili, a criada da casa, só vem a descobrir no final. Mas e nós? Saberemos como é que as coisas acabam? Para os Paumelles, guerra terá de haver sempre, seja lá fora, ou dentro de casa. Veremos famílias endinheiradas, as suas crianças, os seus criados, amigos de família e ainda uma visita surpresa. Ou duas. As provocações de Victor às convenções e protocolos sociais e familiares vão dar-nos a perceber melhor estes ricaços parisienses do início do século XX. Que família seria esta nos dias de hoje? Pelo sim, pelo não, será a criada da casa a abrir e fechar o pano, e a interpelar-nos directamente: o ponto de vista de Lili.
Roger Vitrac conheceu cedo o movimento dadaísta, assim como os textos de Lautréamont, Alfred Jarry e René Crevel. Foi na revista Aventure que, em 1922, publicou a sua primeira peça, “Le Peintre”. Tem, desde então, intensa atividade como poeta, publicando regularmente nas revistas do surrealismo, movimento que integra no início, tendo no entanto sido dele excluído por Breton, em 1928. Funda o Teatro Alfred Jarry (1926-30), com Antonin Artaud, com quem estreia várias peças, como “Les Mystères de l’amour” (1927) e, sobretudo, “Victor ou les enfants au pouvoir”, em 1928. Aliando paródia e tragédia íntima, o seu estilo surpreendente coloca-o como inegável precursor do teatro do absurdo. O surrealismo, de que a peça que esteve em cena no Carlos Alberto é filha dissidente, confere às personagens de Vitrac uma histeria muito actual, uma ânsia muito particular de projectar os seus medos e vontades nos outros. A convivência estreita desta família faz com que o medo de uns se torne o divertimento de outros. Estas pessoas, de facto, não se sabem divertir – partindo do princípio de que a violência não é um divertimento –, e ainda acreditam que a realidade não é capaz de os surpreender ou desmascarar.
Todas as personagens de Vitrac são verdadeiras: as crianças gigantes que gritam verdades assustadoras e que, no dia do nono aniversário, descobrem de uma assentada o Conhecimento e a Morte, são legião; os pobres e coxos casais adúlteros, como Charles e Thérèse, com um pé no ridículo e outro nessa exaltação solitária do eu a que os amantes ainda chamam paixão, formigam à nossa volta; a Morte, enfim, apresenta-se em muitos lares pequeno-burgueses frequentemente sob os traços de uma grande dama, muito bela e fétida; mas todos fingimos não a reconhecer, fingimos não ouvir o que diz o jovem rapaz. Hoje, quase um século volvido, olhamos a peça e vemos o que tem para nos dizer. Talvez Vitrac quisesse apenas escandalizar, ou fazer o burguês da época perder-se de riso, a verdade é que as semelhanças com a situação actual em que o mundo se vê mergulhado não dá vontade de rir. Nesse equilíbrio instável entre um antes e um depois, procurando lembrar quão curta a nossa memória pode ser, João Pedro Mamede oferece-nos uma visão “moderna” do texto de Vitrac com humor e inteligência. Histriónicas como convém, as interpretações acentuam o carácter de farsa, sem esconder o drama que erguem à sua volta. No final ninguém sai a ganhar, mas talvez fosse isso mesmo que Vitrac pretendia.
[Baseado no Programa de Sala, em textos de João Pedro Mamede, Jean Anouilh e na nota biográfica de Roger Vitrac. Fotografia: Teatro Nacional de São João | https://www.tnsj.pt/]
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