LIVRO: “Kairos”,
de Jenny Erpenbeck
Texto original | “Kairos”, 2021
Tradução | António Sousa Ribeiro
Ed. Relógio D’Água Editores, Dezembro de 2024
“A ordem é o medo da desordem. Quer dizer que é medo. Também o seu medo. Será que, porventura, criou simplesmente para si uma imagem de espelho mais bela na carne jovem dela? Alguém que, na sua solidão, pode responder-lhe? Ou foi realmente por amor que partilhou tudo aquilo com ela? De todo o modo, fora ela a razão do seu banimento. Amor, amor, amor, diz ele de si para si, de súbito, a palavra parece-lhe absolutamente oca”.
Na estrutura semântica, temporal e simbólica das civilizações modernas, empregamos geralmente uma só palavra para definir a noção de tempo. Na antiga Grécia, porém, eram duas as palavras para o tempo: “chronos” e “kairos”. Enquanto a primeira se referia ao tempo cronológico ou sequencial (o tempo que se mede), Kairos possuía uma natureza qualitativa, o momento indeterminado no tempo em que algo especial acontece: a experiência do momento oportuno. A mitologia mostra-nos Kairos, “o deus do momento oportuno”, com uma madeixa de cabelo na testa, que é a única forma de ser agarrado. Vemos que a parte de trás da sua cabeça é lisa e sem cabelo, e não há onde o agarrar. Quando passa perto de nós, deslizando sobre as suas pernas aladas, percebemos que se abrem três possibilidades. Ou não o vemos, o que simplifica as coisas. Ou vemo-lo, mas não fazemos nada, o que acaba por ir dar ao mesmo. Ou então, ao passar, estendemos a mão e “agarramos a ocasião pelos cabelos”, arcando com as consequências.
“Kairos”, romance de Jenny Erpenbeck que acaba de ser galardoado com o International Booker Prize 2024, conta a história de Katharina e de como, casualmente, conheceu Hans. Ela tem 19 anos e é estudante, ele é escritor, tem 53 anos e é casado. O encontro tem lugar num dia de chuva copiosa, a 11 de Julho de 1986, num autocarro na parte de Berlim ocupada pela antiga República Democrática Alemã. Passarão os anos seguintes juntos, vivendo de início uma relação apaixonada, mas que muito rapidamente irá decair a ponto de se tornar doentia. Uma relação na fronteira entre a verdade e a mentira, a obsessão e a violência, o ódio e a esperança, à semelhança dessa Estação Friedrichstrasse de onde partem os comboios com destino ao Ocidente, que Katharina vê da janela do seu apartamento e sobre a qual se interroga se não será, no rigor com que faz a ponte entre dois blocos antagónicos, capaz de conter dois tempos diferentes, dois presentes concorrentes, duas realidades quotidianas, uma servindo de inferno para a outra.
O espaço onde a acção decorre e o ambiente social e político não são puras metáforas. O declínio do regime, impulsionado pela Perestroika, era então uma realidade palpável e levantava as maiores dúvidas no Bloco de Leste. Jenny Erpenbeck socorre-se dessa verdade histórica para estabelecer um paralelismo com a vida amorosa e descrever os diferentes aspectos da felicidade através do percurso dos dois amantes. Em poucas palavras, esta é a história de um grande amor e da sua queda, mas é também a história da dissolução de todo um sistema político, o que conduz a uma questão muito simples: Como é que algo que se afigura certo e firme de início, pode vir a revelar-se tão errado? Dona de uma escrita original, extraordinariamente precisa e atenta ao detalhe, a autora mergulha o leitor na intimidade do casal, obrigando-o a seguir uma linha turtuosa de fortes emoções, sem lhe exigir que tome partidos. Nas constantes interrogações que cada um se coloca reside o fascínio do livro, ele próprio um modelo de grande literatura cuja oportunidade importa agarrar. Ainda que pelo cabelo.
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