TEATRO: “À Primeira Vista (Prima Facie)”,
de Suzie Miller
Tradução | Ana Sampaio
Encenação | Tiago Guedes
Cenário | Catarina Amaro
Figurinos | Rita Alves
Interpretação | Margarida Vila-Nova
Produção | Força de Produção
90 Minutos | Maiores de 14 Anos
31º Encontro de Teatro do CiRAC
Cine-Teatro António Lamoso
15 Fev 2025 | sab | 21h30
A ideia subjacente a “Prima Facie” esteve na cabeça da dramaturga Suzie Miller desde os tempos na Faculdade de Direito, à espera do momento certo para ser escrita. O movimento #MeToo veio dar o empurrão decisivo e a peça pôde finalmente ser concretizada. Anos de prática como advogada de direitos humanos e defesa criminal reforçaram o questionamento feminista e as interrogações da autora do texto acerca do sistema jurídico. Embora acreditasse firmemente que “inocente até prova em contrário” é a base dos direitos humanos, Miller sentiu sempre que a sua aplicação em casos de agressão sexual servia mais para minar do que para defender qualquer ideia de justiça real. Denunciar o crime, suportar a morosidade da Justiça, comparecer a uma acusação, ser contra-interrogada e amesquinhada publicamente nos meios de comunicação social, exige uma coragem extraordinária. Ironicamente, é um processo que revela uma imensa fé na justiça do sistema. Mas será que o sistema jurídico merece esta fé? Ou será que silencia ainda mais as mulheres? Como é que a sociedade - e, por conseguinte, a lei - evoluíram para reformar esta área do Direito?
Quando “À Primeira Vista (Prima Facie)” foi encenado pela primeira vez em 2019 no Griffin Theatre, - uma companhia de teatro de autor baseada em Sidney -, houve uma noite especialmente dedicada a mulheres juristas. O público era composto por juízas, advogadas de defesa e acusação de vários níveis, solicitadoras e mulheres políticas dos parlamentos estaduais e federal da Austrália. Apenas e só mulheres. Na qualidade de criadora, Miller sentou-se no palco depois da peça e o que se seguiu foi uma longa e emocionante discussão que se desenrolou numa autêntica intersecção entre arte e mudança social. Ainda nessa semana, os membros da Comissão de Reforma Legislativa assistiram também a uma representação da peça. Escolas masculinas em grupos, acompanhados por professores e pais, tiveram igualmente oportunidade de ver apresentações da peça em sessões especiais. A compaixão e a curiosidade expressas no final foram um sinal de esperança para as gerações futuras.
No António Lamoso, em Santa Maria da Feira, não houve lugar a debate no final da peça, mas estou certo que espectador algum terá ficado indiferente àquilo a que teve oportunidade de assistir, obrigado a reflectir nas muitas questões que “À Primeira Vista (Prima Facie)” levanta. A peça faz passar, de forma admirável, a mensagem de que o sistema jurídico é moldado pela experiência masculina, os casos são decididos por gerações de juízes homens e as suas normas estabelecidas por gerações de políticos do sexo masculino, num contexto em que as mulheres foram em tempos classificadas como propriedade dos seus maridos, pais e irmãos. Por isso, a legislação sobre a agressão sexual está desajustada da experiência real vivida pelas mulheres. São sempre as vítimas, normalmente mulheres, que são “julgadas”, interrogadas e obrigadas a reviver a sua experiência humilhante, e depois postas em causa acerca dos motivos que as levaram a denunciar um crime hediondo contra a sua pessoa. No entanto, e significativamente, a investigação demonstrou que as pessoas simplesmente não acreditam nas mulheres que testemunham em casos de agressão sexual. Mesmo outras mulheres!
A peça narra a história de Teresa Correia, uma talentosa advogada que vai acumulando sucessos nos casos que defende. Todavia, a sua cuidadosa tentativa de lidar com as partes discricionárias deste mundo começa a parecer perigosa, apanhando-a entre a própria vida e as suas convicções. Subitamente empurrada para uma situação em que é ela que tem de testar o sistema, Teresa descobre que as paredes desta estrutura aparentemente inatacável e em que confiava começam a desmoronar-se e que não há nada seguro a que se agarrar. Ver a lei como ela é, uma construção humana imperfeita, em constante evolução com as mudanças sociais, liberta-a para encontrar a sua voz e convocar-nos a todos a agir. Margarida Vila-Nova encarna a personagem de Teresa, num monólogo vibrante, intenso, avassalador. Preso às suas palavras, aos seus gestos, à forma como se desdobra em várias outras personagens, o espectador vê-se esmagado pelo peso da verdade que sobre si se derrama, cobrindo de culpa e de vergonha a sociedade da qual fazemos parte. O ritmo que a actriz imprime à peça, acrescenta-lhe uma fisicalidade inesperada que vem reforçar a sua dureza psicológica, mergulhando o espectador num caldeirão de emoções difíceis de conter. Uma peça absolutamente essencial, com uma interpretação consistente e convincente, vertiginosa, arrebatadora. Bravo!
[Foto: © Filipe Ferreira | Força de Produção]
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