Páginas

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

TEATRO: "A Médica"



TEATRO: “A Médica”,
de Robert Icke
Tradução | Ana Sampaio
Encenação | Ricardo Neves-Neves
Cenografia | Fernando Ribeiro
Figurinos | Rafaela Mapril
Interpretação | Adriano Luz, Custódia Gallego, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Pedro Laginha, Rita Cabaço, Sandra Faleiro e Vera Cruz
Produção | Teatro do Eléctrico
Teatro da Trindade Inatel - Sala Carmen Dolores
02 Fev 2025 | dom | 16:30


Uma menina de 14 anos está a morrer numa cama de hospital. Um padre católico, amigo dos pais da criança, vê negada a sua pretensão de auxílio espiritual a uma vida prestes a deixar de o ser. A recusa intransigente parte de Piedade Lobbo, directora do Hospital, a Médica a que alude o título da peça. Justifica-se com a necessidade de garantir serenidade à doente num momento delicado, diz nada ter que prove ser essa a vontade dos pais, garante que, sendo a criança menor, é ao médico que cabe qualquer tomada de decisão. O padre insiste, não aceita a recusa, informa que vai gravar a conversa, a confusão instala-se. Há insultos e ameaças, talvez haja mesmo uma agressão física. Afinal, o que poderá estar na origem de uma tomada de posição tão pouco compreensiva por parte da médica? O facto de ser mulher, branca e judia, face a um homem, negro e católico, terá algo a ver com a decisão? A menina morre e o caso é tornado público. Piedade Lobbo será suspensa de funções, num processo ao qual não serão alheias as questões éticas e deontológicas da profissão médica, os valores morais da Igreja, as diferenças de género, a manipulação da opinião pública, a promiscuidade entre a política e os negócios, a desinformação digital, os julgamentos em praça pública.

O caso da criança entre a vida e a morte toma conta da peça desde os primeiros momentos. Os factos são apresentados na sua forma mais crua e o público vê-se obrigado a “entrar na peça”, a tomar partidos. A tão propalada humanização nos serviços de saúde parece não se coadunar com a decisão médica de negar a presença de um padre à cabeceira de uma doente, e isto até os menos familiarizados com as dinâmicas no seio das equipas médicas são capazes de adivinhar. Piedade Lobbo não terá contra si apenas alguns dos médicos do Conselho Geral ao qual preside, mas também uma boa parte do público. Mas não é só na cumplicidade imediata com cada um dos espectadores que a peça marca pontos. Também a qualidade das interpretações é posta em evidência, desde a chegada de um novo interno à equipa ao diálogo final da médica com o padre. No leque de actores, sobretudo Adriano Luz e Rita Cabaço nos seus papéis, complementando da melhor forma o desempenho excelente de Custódia Gallego. Será ela que, no papel de Piedade Lobbo, se irá metamorfosear ao olhar do público, abandonando a sua dureza, implacabilidade e orgulho à prova de bala, desmoronando-se face a tanta agressividade por parte de quem não a conhece, para mostrar o seu lado frágil e profundamente humano, dando nisso a mais bela prova da sua inocência.

Adaptação contemporânea de Robert Icke, da peça de 1912, “Professor Bernhardi”, de Arthur Schnitzler, “The Doctor”, no original, coloca-nos perante um conjunto de temas que estão na ordem do dia. Partindo dessa espécie de braço de ferro da medicina e da ciência com a religião, o texto possui um lado engenhoso que consiste em deixar as questões em aberto, em busca de respostas que cada um terá (ou não) dentro de si. Ciência, religião, sexualidade, identidade ou racismo, são como cartas atiradas para a mesa de todas as discussões, ora funcionando como um desafio às nossas convicções, ora mostrando a forma como lidamos com o preconceito e tendemos a falar daquilo que não sabemos. Ora, é precisamente aqui que a peça afirma a sua força, ao confrontar-nos com uma lutadora pelos direitos humanos e pela dignidade que se impõe a qualquer pessoa, e todavia uma mulher isolada, incapaz de fazer valer os seus argumentos e provar a sua inocência, vítima de uma sociedade onde a tão proclamada igualdade está longe de ser uma realidade. Num quadro de adulteração de princípios, rendidos cada vez mais ao imediatismo, ao consumismo e à globalização, é premente não esquecer que neles se fundam os valores da nossa vida em sociedade e que a sua rejeição é uma via directa para o caos. “A Médica” ajuda a que não nos esqueçamos disso.


Sem comentários:

Enviar um comentário