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terça-feira, 7 de janeiro de 2025

LIVRO: "O Canto do Melro - A Vida do Padre José Martins Júnior"



LIVRO: “O Canto do Melro - A Vida do Padre José Martins Júnior”,
de Raquel Varela
Ed. Bertrand Editora, Novembro de 2024


“A burguesia chegou ao poder com revoluções violentas contra a nobreza nos séculos XVIII e XIX, e toda a violência usa-a desde então contra os trabalhadores. Ao mesmo tempo, o seu caso, Padre Martins, e a Revolução dos Cravos demonstram que tanta gente envolvida, em movimento, faz tremer a burguesia. O seu papel nisto tudo não é uma nota de rodapé, soube organizar o povo, dar-lhe consciência, educá-lo, crescer com ele, foi um dirigente. Essa polarização, no fundo a consciência de nós e eles, é vital. Nunca lhes deu descanso: a cada ataque respondia, a cada calúnia contestava, a cada ação mexia-se. Estou convencido de que essa ação, esse dizer “não” constante à ditadura e repressão de classe, foi um marco fundamental do que representou. De uma penada, enfrentou o Estado e a Igreja, contra o senso comum dos brandos costumes. Nunca deu a outra face.”

Nascido no Machico, na vertente oriental da ilha da Madeira, a 16 de Novembro de 1938, o Padre José Martins Júnior notabilizou-se enquanto professor em diversas escolas e também como capelão durante dois anos na guerra do Ultramar. A sua atitude enérgica e reivindicativa fez-se sentir desde sempre, incapaz de conter a revolta contra a forma como os padres madeirenses sobreviviam “à custa do altar, dos funerais, das missas e novenas, dos sacramentos vendidos à peça”, presos que estavam pelo garrote financeiro que os obrigava a sujeitar-se perante o bispo. “Desterrado” para o Porto Santo e, em 1969, para a Ribeira Seca, um ermo no interior da Madeira, foi aí que o Padre Martins desenvolveu com a população um conjunto de acções revolucionárias à época e que viriam a ter uma expressão política vincadamente de esquerda, enérgica e reivindicativa, no período após o 25 de Abril. No meio de um povo submisso e resignado, explorado ao longo dos séculos pelo domínio de senhorios e da própria Igreja, o Padre Martins cedo descobriu que o seu rebanho, intimamente, alimentava a hora da libertação. Limitou-se, pois, a criar condições para dar livre-trânsito a esse sentimento atávico, vendo as portas abrirem-se de par em par com a chegada do dia inicial, inteiro e limpo.

Resultado de uma década de investigação, de muitas conversas entre a autora e o Padre Martins e de muitos quilos de sal comidos em conjunto, “O Canto do Melro - A Vida do Padre José Martins Júnior” é um trabalho extraordinário naquilo que dá a ver da vida deste homem nos planos pessoal, social, económico, político e religioso, mas também pela forma como recria a relação entre as personagens, conferindo ao livro um cunho de “romance biográfico”. Numa escrita arrebatada, Raquel Varela começa por revelar um Padre Martins na flor da idade, a longa barba e o cabelo desgrenhado que sobrava da careca redonda, os óculos garrafais de aros castanhos, levando-nos por caminhos e atalhos que, ao longo de seis décadas, destacam uma personagem continuamente empenhada em “combater o bom combate”. O livro fala do percurso de vida e de luta deste homem corajoso e determinado, dotado de um forte sentido de humor, enamorado pelas palavras, generoso e profundamente lúcido, e da sua firmeza face às arremetidas da diocese e aos ataques do governo. Ao mesmo tempo, mostra como é possível construir uma Utopia de carácter universal, uma cidade sem muros nem ameias, cruzando o marxismo heterodoxo com o cristianismo da libertação, levando a ciência a abraçar a fé.

“Martins continuava a exigir de mim um passo rápido. Mantinha o voo do melro, poderoso, com batimentos de asas regulares, planando frequentemente a diversas altitudes e executando muitas vezes acrobacias.” Na figura de Richard, revolucionário inglês luso-descendente, é Raquel Varela que se dá a ver nas suas inquietações e dúvidas, na admiração crescente pela figura do seu biografado, nas descobertas que vêm dar força às suas mais fundas convicções. Tudo o resto é este “melro” que, na sua simplicidade e verdade, não se deixa aprisionar. Que soube separar a sacralidade eucarística das mensagens terrenas, não se inibiu de apontar o dedo aos adoradores que se ajoelham em fofas almofadas vermelhas e não vacilou nas suas crenças, mesmo depois da suspensão “a divinis” decretada em 1977 pelo bispo da diocese do Funchal, D. Francisco Antunes Santana, e que acabou por ser levantada 42 anos depois pelo actual bispo, D. Nuno Brás. Exemplo de fé e coragem, dele são as palavras que nos recordam que “o Evangelho não é um exclusivo da Igreja de Roma nem a Ribeira Seca é uma coutada de caça da diocese ou do papa. Nem muito menos Jesus de Nazaré é monopólio do Vaticano”. Um homem que, com todos estes embates, aprendeu uma lição que nos deixa como legado: “Quanto mais longe desta hierarquia, mais perto de Jesus, o Nazareno.”

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