ENCONTRO: “Cantar os Reis”
Encontro com as quatro Troupes de Reis mais antigas de Ovar
Igreja Matriz de Ovar
04 Jan 2025 | sab | 21:00
“Pela calada da noite ecoarão arpejos tristes de violões, vibrarão trinados de bandolins e morrerá ao longe entoado dolente, o chorar dos violinos… percorrendo o povoado seguindo à luz avermelhada do lampião secular, ao alpendre da casa, ou ao pátio senhorial gritar: oh! da casa nobre gente escutai e ouvireis.”
António Santiago, jornal O Ideal Vareiro, 1917
No princípio eram… as Janeiras. Até finais do século XIX, à imagem do que se fazia um pouco por toda a parte, eram as Janeiras que se cantavam em Ovar. Bandas, bombeiros, colectividades locais ou grupos anónimos, civis ou religiosos, organizavam-se e saíam à rua, de porta em porta, visitando as famílias economicamente mais favorecidas, delas recebendo ofertas em troca da singeleza dos seus cânticos. Eram as vulgares Janeiras, ou Santos Reis, canções ao Deus Menino e Benditos, acompanhadas com instrumentos que iam da viola e do cavaquinho, ao bombo e aos ferrinhos, à pandeireta e ao acordeão. Em Ovar, nos dias de hoje, já ninguém confunde o cantar os Reis com o cantar as Janeiras, pese embora as Janeiras se mantenham firmes na tradição, verificando-se o seu cantar com maior incidência nas Beiras e no Norte de Portugal. A forma como, a partir de 1893, a tradição evoluiu no nosso Concelho, acabou por “delimitar, de modo claro e inequívoco, as fronteiras entre as duas realidades: no tempo, nos objectivos, nas temáticas desenvolvidas, na música, nos instrumentos e nas suas origens.” O reconhecimento desta singularidade levou a que o Cantar dos Reis em Ovar viesse a ser inscrito no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial (D.R. n.º 228/2020, Série II de 2020-11-23).
“Ovar está / Mais um ano a cantar os réis / E certamente ouvireis / As trupes no vosso lar // A tradição / Que é tão nobre e secular / Da nossa cidade de Ovar / Única em Portugal”. Poemas inspirados, composições de elevada qualidade e uma melodiosa harmonia vocal são marcas identitárias do nosso Cantar os Reis, como o comprova, no ano que agora se inicia, o labor em torno desta tradição secular desenvolvido pelas 15 troupes adultas e 12 troupes infantis actualmente existentes no Concelho. São elas que, ano após ano, continuam a levar a mensagem, a melodia e o aconchego do Cantar os Reis a casas particulares, estabelecimentos comerciais, instituições e entidades, envolvendo largas centenas de vareiras e vareiros. Espaço de excelência para a apresentação dos respectivos repertórios - constituídos, tradicionalmente, pela “Saudação”, “Mensagem” e “Agradecimento” -, a Igreja Matriz de Ovar foi palco, na noite do passado sábado, de um encontro com as quatro troupes de Reis mais antigas de Ovar. Momento muito belo, de luz e esperança nas palavras ao Divino, nele se evidenciou o valor da tradição, assente não apenas na qualidade de letras e músicas ou na beleza das vozes, mas sobretudo no que implicam de união e companheirismo, amizade e solidariedade no seio das comunidades.
“És a estrela. Infinita bondade / Realidade. Tão verdadeira / És paz no mundo transmites o amor / Do redentor à humanidade // Raio de luz, Abraço fraternal / Guia e seduz, O simples mortal”. Troupe de Reis do Orfeão de Ovar, Troupe de Reis da Associação Desportiva Ovarense, Troupe de Reis JOC/LOC e Troupe de Reis da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ovar ocuparam o centro da Igreja por esta ordem, trazendo nas suas mensagens a paz e a dádiva, o amor e a partilha. Entre violas e flautas, violinos e bandolins (e até um violoncelo), as vozes elevaram-se em graça e beleza, fazendo rimar missão, bonança, pensamento e calor com coração, esperança, sentimento e amor. Pode uma voz mais baixa não se ter feito ouvido, um grupo se ter atrasado ou os acordes de uma flauta terem saído do tom, mas o que é isso perante “canções originais / tão belas e tão cordiais”, entoadas em coro com a força do coração, por gente “dos oito aos oitenta e oito”? Foi uma noite de paz, uma noite de amor, que a todos preencheu com os valores da bondade e da amizade. Faltou apenas aquele toque de graça levado à prática, o profano que justifica o sagrado, “(…) sem bombos para acompanhar / sem gaitinhas e sem sanfonas”: Uma mesa farta numa das laterais da Igreja, onde não faltasse “O pão de ló, ó ó / Que bom que é, se é / E se for pi, to to / É com colher, co lher // E o porti, nho nho / Prá acompanhar / Bebe pouco senão vais tombar”. Mas isto sou eu a dizer!
[Os versos apresentados são excertos dos números cantados pela Troupe de Reis JOC/LOC]
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