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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

CINEMA: "Ainda Estou Aqui"



CINEMA: “Ainda Estou Aqui”
Realização | Walter Salles
Argumento | Murilo Hauser, Heitor Lorega
Fotografia | Adrian Teijido
Montagem | Affonso Gonçalves
Interpretação | Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Valentina Herszage, Maria Manoella, Bárbara Luz, Gabriela Carneiro da Cunha, Luiza Kosovski, Marjorie Estiano, Guilherme Silveira, Antonio Saboia, Cora Mora, Olívia Torres, Humberto Carrão
Produção | Maria Carlota Bruno, Rodrigo Teixeira, Martine de Clermont-Tonnerre
Brasil, França | 2024 | Biografia, Drama, História | 136 Minutos | Maiores de 12 Anos
Vida Ovar Castello Lopes
25 Jan 2025 | sab | 18:30


“Rio de Janeiro, 1970, sob a ditadura militar”. A legenda inicial lembra-nos que este não é um filme solar, assombrado que está pelo feroz movimento da extrema-direita brasileira, iniciado com o golpe de 31 de Março de 1964 e que se prolongou por quase vinte e um anos. As primeiras sequências, porém, revelam tempos de aparente normalidade, a casa dos Paiva a fervilhar de vida no vai e vem das crianças, nas histórias partilhadas com os amigos, nas memórias felizes da família. Até ao dia em que os esbirros do regime prendem Rubens, o pai, levando-o para parte incerta. Eunice e Eliana, mulher e filha de Rubens, são igualmente interrogadas, mas após alguns dias na prisão acabam por ser libertadas. Quanto a Rubens, desaparece sem deixar rasto, dando início a uma luta feroz de Eunice e dos filhos do casal na busca pela verdade. Ao longo de um processo que apenas terminou em 1996, com o reconhecimento oficial da morte de Rubens Paiva, o filme irá falar dos crimes perpetrados pelo regime, da censura nos orgãos de comunicação social, das perseguições aos opositores ou da fuga para o exílio dos grandes nomes da cultura. Num mesmo plano, ergue-se a coragem e resiliência daqueles que, persistindo e resistindo, dão um contributo fundamental para a restauração da liberdade e da democracia no país.

Em 2015, o escritor Marcello Rubens Paiva publicou “Ainda Estou Aqui”, romance biográfico que aborda um momento muito particular da sua vida ao longo de um dos períodos mais obscuros da história recente do Brasil. Foi esse drama que Walter Salles quis levar à tela, oferecendo-nos uma reconstrução fiel do Rio de Janeiro dos anos 70 e mostrando não apenas a história real do deputado Rubens Paiva, sequestrado, torturado e executado pelos militares em 1971, mas sobretudo a força e determinação de uma família face às enormes adversidades que foi obrigada a enfrentar. É importante ter presente este aspecto já que a grande figura do filme é, muito justamente, Eunice Paiva. Mãe de cinco filhos, soube assumir as rédeas de um processo que tendia para o caos quando tudo se desmoronava à sua volta, tomando o destino nas próprias mãos e sabendo reinventar-se no meio de tanta dor. Voltou a estudar, formou-se em Direito e foi uma acérrima defensora da luta dos povos indígenas. Mas aquilo que o filme mostra de forma pungente é o seu empenho e firmeza na busca da verdade, o seu olhar decidido em mostrar essa vontade, os sorrisos para as fotografias quando lhe pediam para evidenciar o contrário, as perdas e ganhos de um quotidiano que nunca se permitiu afundar na descrença e no desânimo.

Numa altura em que Donald Trump assume a presidência dos Estados Unidos da América e as suas decisões de sentido único já se fazem sentir um pouco por todo o mundo, assistimos à estreia de um filme fortemente empenhado em elevar os valores da liberdade e da democracia e responder aos populistas, mostrando-lhes a realidade de um regime onde reinam a intolerância e o medo. Além de uma descrição nua e crua da ditadura, o filme é um retrato comovente de uma mulher de muitas vidas, que coloca os interesses da família à frente das suas próprias emoções. Walter Salles é exímio na forma como filma os olhos carregados de tristeza da protagonista, mas que mesmo assim não deixa de exibir o seu bonito sorriso para não preocupar os filhos. Sem cair no melodrama, o filme desenvolve na perfeição uma história complexa, gerindo habilmente as diferentes personalidades em jogo, dando uma atenção especial a cada uma delas e garantindo que se mantém no centro da acção. Perturbador, sem truques na manga, este é um filme impactante em todos os sentidos e que nos vem lembrar, numa época em que os populismos e os movimentos de extrema-direita alastram no mundo, que o perigo de as democracias desaparecerem é real. “Ainda Estou Aqui” soa como um grito de alerta, actual e urgente, sobre o qual é fundamental reflectir.

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