TEATRO: “A Colónia”
Direcção e dramaturgia | Marco Martins, a partir de uma reportagem de Joana Pereira Bastos, documento e testemunhos de todo o elenco, e obras de Bertolt Brecht, Czesław Miłosz, Deborah Levy, Filippo Marinetti, Gonçalo M. Tavares, Jean-Luc Godard, Anne-Marie Miéville, Slavoj Žižek, William Shakespeare
Cenografia | Isabel Cordovil, João Romão
Movimento | Vânia Rovisco
Música | B-Fachada, João Pimenta Gomes
Interpretação | Manuela Canais Rocha, Conceição Lopes, Conceição Matos, Domingos Abrantes, Humberto Candeias, Olga Sequeira Santos, Rita Veloso, Valentina Marcelino, João Pedro Vaz, Sara Carinhas, Ana Vilaça, Rodrigo Tomás, Anderson Ramos, Arthur Lupi, Beatriz Ribeiro, Diana Soares, Inês Paulino, Joaquim Queiroz, Laura Trueb, Leonardo Martins, Lurdes Ferraz, Milena Mavie, Niurka Sacramento, Pedro Conceição
Produção | Arena Ensemble
130 Minutos | Maiores de 14 Anos
Teatro Nacional de S. João
26 Jan 2025 | dom | 16:00
“Em julho de 1972, nas Caldas da Rainha, 18 crianças – entre os 3 e os 14 anos – encontraram-se no mesmo casarão para lá passarem duas semanas de férias. Ali, cada um descobriu existirem crianças como eles, que conheciam as mesmas andanças, sustos semelhantes, muitas vezes os mesmos gestos. De uma forma ou de outra, eram todos crianças que sabiam línguas secretas, e todos crianças que conheciam a palavra saudade. No casarão das Caldas da Rainha, devagar, podiam começar a descansar de ter medo. Podiam inclusive descansar da solidão. Finalmente, as crianças puderam brincar juntas.”
Matilde Campilho, escritora
“Foi aos 9 anos, no primeiro dia da colónia de férias que havia de lhe salvar a vida, que Manuela percebeu finalmente que “não era uma aberração”. Só aí compreendeu que não estava sozinha, que havia outros como ela. Crianças escondidas que viviam com medo, marcadas pela brutalidade da prisão dos pais, arrancadas dos seus braços e forçadas a crescer com o vazio. Até àquele domingo, 23 de julho de 1972, Manuela nunca tinha brincado com outras crianças.” É desta forma que começa o texto de Joana Pereira Bastos, publicado no jornal Expresso de 07 de Agosto de 2021 e intitulado “Verão de 1972: as férias da liberdade. História dos filhos de presos políticos numa colónia nas Caldas da Rainha”. Foi este o ponto de partida para levar ao palco “A Colónia”, uma produção do Arena Ensemble com direcção e dramaturgia de Marco Martins - a par de “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues, a mais impactante e importante peça de teatro a que assisti nos últimos anos. A Manuela a que a peça jornalística alude não é uma personagem de ficção. Existiu (e existe) mesmo e falou-nos, de viva voz, ao longo da peça, do seu drama de ser menina sem saber bem o que isso era. Com ela, também a Conceição Lopes e o Humberto Candeias, a Olga Sequeira Santos, a Rita Veloso e a Valentina Marcelino partilharam connosco as memórias de uma colónia onde aprenderam a ser crianças, esquecendo por alguns dias um passado de clandestinidade, sofrimento e solidão.
Reunindo em palco um elenco multifacetado, que juntou actores, não actores e aspirantes a actores, Marco Martins trabalhou a peça a partir de histórias e experiências pessoais, propondo uma ampla reflexão sobre história, memória e opressão. Algumas dessas histórias falam do desconhecimento do verdadeiro nome do pai ou da mãe, de apenas conhecerem irmãos pela palavra bebé, de não corrigirem deficiências de nascença por não estarem registados e serem considerados ilegais, de terem no cartão de visita da prisão o seu primeiro documento de identidade. “Ditaduras dissolvem jogos, misturam datas, e também arrancam nomes”, diz Matilde Campilho, aludindo a um conjunto de situações onde a memória se confunde e as recordações tendem a perder o seu valor. Por isso aquela colónia foi tão importante: Escreveram-se cartas, fizeram-se desenhos, montaram-se teatros de fantoches, deram-se passeios de burro, contaram-se muitas histórias, cantaram-se cantigas que mais nenhuma criança conhecia. Falou-se do dia a dia e falou-se do tempo antigo, e falou-se muito de um futuro que acabaria por chegar. E ergueram-se fogueiras à noite para serem vistas lá longe nas celas de Peniche, gritando-se bem alto “PAI”, com a certeza de que os pais viam aquelas fogueiras e sabiam estarem ali os seus filhos.
Concebendo o cenário em dois níveis sobrepostos e a dramaturgia em diversos tempos coexistentes, Marco Martins quis chamar a atenção, cinquenta anos depois do 25 de Abril, para este “período particular, não apenas enquanto relato, mas atentando às suas repercussões, agora e no futuro”. Pareceu-lhe fundamental “a construção de um espectáculo que recuperasse a memória – sempre rizomática e misteriosa – de pessoas que viveram tolhidas e silenciadas pela repressão.” Para tanto, fez um aturado trabalho de pesquisa (“na verdade devia chamar-lhe trabalho sobre a memória, ou criação de memória, a partir de pessoas secundarizadas ou desvalorizadas social e historicamente”, diz), recorrendo a fotografias, cartas e desenhos, vindos da clandestinidade ou trocados na prisão, num processo de abertura de valiosas e peculiares possibilidades de transmissão que envolveu todo o elenco. A partilha de testemunhos das crianças da Colónia com os actores e jovens das escolas e instituições envolvidas viria a revelar-se fundamental no espalhar da semente contra os totalitarismo e fascismos que alastram por toda a Europa, arrastando consigo um profundo retrocesso civilizacional. Que a semente possa dar frutos é algo que resulta numa certeza para aqueles que tiveram a oportunidade de ver a peça. É tempo de elevar ainda mais a guarda, porque é fundamental persistir, resistir. “Em quem confiamos para o fazer?”
[Foto: Teatro Nacional de S. João | https://www.tnsj.pt/]
Sem comentários:
Enviar um comentário