TEATRO MUSICAL: “Dueto Duelo”,
Direcção artística e encenação | Ricardo Vaz Trindade
Criação Coletiva | Cecília Matos Manuel, Edite Queiroz, Eduardo Brito, Henda Vieira Lopes, Joana Bértholo, Luana Cunha Ferreira, Mariana Rebelo, Marta Félix, Miguel Sobral Curado, Raquel Castro, Ricardo Vaz Trindade, Rita Brütt, Rute Ribeiro, Vasco Pimentel, com base num texto original de Eduardo Brito, Joana Bértholo
Cenografia | Pedro Brígida, Ricardo Vaz Trindade
Interpretação | Mariana Rebelo, Ricardo Vaz Trindade, Rita Brütt
Piano e direcção musical | Vasco Pimentel
Bateria | Miguel Sobral Curado
Contrabaixo | Francisco Nogueira
90 Minutos | Maiores de 16 Anos
Escola de Artes e Ofícios
24 Jan 2025 | sex | 21:30
Entramos na bela sala expande da Escola de Artes e Ofícios e é como se entrássemos num restaurante daqueles chiques, com mesas redondas muito bem postas, um menu feito de nomes pomposos, pratos elaborados com uma apresentação irrepreensível, uma carta de vinhos onde não faltam borgonhas e bordéus. Circunspecto, acolhedor e intimista, o ambiente faz-se de música ao vivo. Aqui se celebram aniversários, se comemoram feitos, se lançam ideias, se planeiam crimes. Se fazem e desfazem amores, como os da Teresa e do Tiago, que neste restaurante se conheceram e cimentaram a sua relação, partilharam com a pequenina Tânia o prazer de uma mesa para três e agora, desempenhando um papel cada vez mais familiar, estão prestes a separar-se. Dizem ter saudades um do outro, apenas porque não têm estado juntos. Embora vivam na mesma casa, durmam na mesma cama e se sentem no mesmo sofá a ver a Netflix, as únicas palavras que trocam são, cada vez mais, um “olá” e um “adeus”. Já só sabem discutir, esgotaram os argumentos e não conseguem ouvir-se. Tudo o que fazem é errado, cada frase tem um gatilho pronto a disparar. Parece já nada haver para salvar e não será uma noite diferente que irá reverter a situação. Como é que tudo aconteceu? Como é que chegaram aqui?
Criação colectiva a partir de um texto original de Eduardo Brito e Joana Bértholo, “Dueto Duelo” é um espectáculo construído com enorme sensibilidade, feito de apontamentos subtis que remetem para a realidade de uma vivência a dois e tipificam um fenómeno cada vez mais usual, o fim do “felizes para sempre”. Num mundo onde o ideal de amor romântico cede ao individualismo exacerbado, aos estímulos e às possibilidades da sociedade global, desafiando o modelo tradicional de “relação-para-toda-a-vida”, é a pequena morte de um projecto sonhado a dois que se abre em frustração e revolta, arrastando com ela um conjunto de desafios práticos, emocionais e sociais, com enorme impacto nas vidas de cada um e de consequências, as mais das vezes, imprevisíveis. Do luto dos afectos ao papel dos filhos no centro do turbilhão, da reorganização das finanças e das rotinas diárias às muitas contradições e à resistência à acusação e às desculpas, da aceitação da tradicional “facada” na ética familiar judaico-cristã aos abalos com a auto-percepção, identidade e imagem, são as regras, rotinas e idiossincrasias que se desmoronam irremediavelmente, levantando na nuvem de pó espesso uma questão primordial: De que forma se redefine a relação do dueto e se escapa à sua transformação em duelo?
“Dueto Duelo” é uma peça necessária. Porque abraça um território de disputa onde é mais fácil sentir do que dizer. Porque coloca o espectador numa enorme inquietação face “aos laços românticos nos nossos dias, às profundas transformações das relações modernas e às novas dinâmicas da conjugalidade”. Porque toca as emoções de modo intenso e vívido, conflituando num processo de atracção-rejeição. Porque é fonte de inquietação e desconforto no convite a “meter a colherada” e a tomar partidos. E porque trabalha o espírito do tempo, como nele nos perdemos e reencontramos nas misteriosas veredas dos afetos. A música interpretada ao vivo por Vasco Pimentel (piano), Francisco Nogueira (contrabaixo) e Miguel Sobral Curado (bateria), revela-se preciosa no sublinhar das muitas passagens da peça - brilhante a bateria no discurso irado de Tiago, eloquente o piano no acompanhar das memórias à volta dos Beatles ou Leonard Cohen, Chopin ou os Joy Division -, acompanhando as variações de tom da peça e mostrando a música como um lugar com vida própria, ora contida ora emotiva. Nos seus papéis, Rita Brütt e Ricardo Vaz Trindade vestem as personagens de Teresa e Tiago com o melhor de si, tornando-as credíveis e empáticas, ao encontro das experiências pessoais do espectador. Os dois conseguem ser tocantes na afirmação da sua verdade, como na demonstração das suas fragilidades. Entre dilemas e provocações, uma peça belíssima que pede a nossa atenção.
[Foto: Manuel Vitoriano | Ovar/Cultura, https://www.facebook.com/ovarcultura]
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