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terça-feira, 5 de novembro de 2024

TEATRO: "Sombras"



TEATRO: “Sombras”,
Texto | Miguel Falcão
Encenação | Ana Nave
Cenografia | Rui Francisco
Interpretação | Carla Maciel, Mafalda Marafusta
Produção | Teatro da Trindade
55 Minutos | Maiores de 12 anos
Teatro da Trindade INATEL - Sala Estúdio
02 Nov 2024 | sab | 19:00


Uma jovem mulher, com a filha recém-nascida, regressa para casa da mãe após um longo período de ausência. O pai faleceu há pouco e o marido trabalha no estrangeiro. Embora pareça inegável o gosto que a mãe sente em ter consigo a filha e, também, uma neta cuja existência desconhecia, são enormes as barreiras que se erguem na relação entre ambas. Embora justas e humanas, as duas mulheres mostram pontos de vista completamente diferentes. Enquanto a mãe, conservadora, acha que o seu lugar é em casa, a rezar a Deus, a cuidar da família, a ser a mulher de um chefe de família e a respeitar a tradição e os bons costumes, a filha revela-se uma mulher emancipada, disposta a pensar pela própria cabeça, que não quer viver com medo e não se importa de sacrificar a própria maternidade para  transformar o mundo, para que a filha cresça como ela não cresceu. Tornada irrespirável pela oposição de campos ideológicos e políticos das duas mulheres, a casa irá assistir ao confronto, por vezes violento, entre quem luta pela liberdade e pela justiça e quem pretende que tudo fique na mesma.

“Em todos os lugares, até onde menos se espera, há sombras, diferentes sombras…”. Inspirado numa realidade à qual o 25 de Abril de 1974 pôs cobro, “Sombras” é sobre todos os lugares onde a liberdade dos seres humanos está em causa e onde, apesar de todos os modos de censura e repressão, pessoas inconformadas fazem da coragem a sua força e da luta o fundamento para a construção de um mundo melhor. Nas sombras de um quotidiano austero e desconfiado, feito de palavras sussurradas e enigmáticos telefonemas sempre à mesma hora, o espectador é convidado a viver a história destas mulheres que insistem em sair da sombra, em rejeitarem os papéis que lhes são impostos e em assumirem, elas próprias, o protagonismo num espaço onde a liberdade é figura de corpo ausente. São mulheres determinantes na acção e  no pensamento, capazes de fazer a diferença. Por isso nos sentimos filhos desta mulher que diz “pode não ser para mim, mas vai ser  para a minha filha”. Por ela e pela sua luta vemos o quão importante é dizermos aquilo que pensamos, abraçamos um sistema que oferece igualdade de tratamento para todos e damos à liberdade o valor que ela tem.

Texto vencedor da sexta edição do Prémio Miguel Rovisco – Novos Textos Teatrais, promovido pelo Teatro da Trindade INATEL e que visa premiar a escrita de peças de teatro em língua portuguesa, “Sombras” é uma homenagem a todos aquelas e aqueles que, de alguma forma, contribuíram para que hoje possamos celebrar 50 anos de democracia. No momento em que, por todo o planeta, há gente que continua a arriscar a vida para que os seus filhos possam um dia viver em liberdade, a peça mostra que as sombras estão na estupidez e na intolerância, no preconceito, no fascismo. Tirando o melhor partido de um espaço pequeno, quase concentracionário, Ana Nave faz da encenação um trunfo maior ao “obrigar” o público a entrar no espectáculo. E há, claro, Carla Maciel e Mafalda Marafusta, tocantes de entrega, vibrantes de emoção. Assertivas e rigorosas no tratamento que dão às palavras, capazes da mesma intensidade num simples gesto ou no diálogo mais acalorado, elas são a Mãe e a Filha perfeitas, alma e corpo de uma magnífica peça que nos lembra que a liberdade e a democracia não são conquistas definitivas.

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