EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “Sem Passado”,
de Felícia Pinho Oliveira
Curadoria | Manuela Matos Monteiro, João Lafuente
Encontros da Imagem de Braga
Mira Forum
14 Set > 09 Nov 2024
“Este Menino hádeçe chamar Manoel. Leva hum lenço branco uma faixa branca e trez paninhos brancos. Naçeu em 4 de Agosto de 1825 p.ª a todo o tempo que se procurar ser entregue a seu dono = Entrou as 8 horas e hum quarto da manham.”
“Sem Passado” é um projeto de fotografia documental sobre o arquivo da Casa da Roda do Porto e as memórias de quem por lá passou. Instituição destinada a acolher crianças abandonadas anonimamente pelos progenitores, a Casa da Roda existiu no Porto entre os séculos XVII e XIX e teve três instalações diferentes ao longo do tempo, das quais não restam vestígios. As crianças eram normalmente abandonadas com o seu enxoval e com um objecto, de natureza muito diversa, que as distinguia das demais. Esse objecto era designado por “sinal” e permitia a recuperação inequívoca da criança no futuro. Os “sinais” que marcaram estas crianças formam, juntamente com os livros da Roda e os espaços do Arquivo Distrital do Porto onde se conserva este imenso espólio de mais de 180 metros de documentação, o corpo de trabalho de Felícia Pinho Oliveira, retratando a estética de abandono do século XIX e recuperando a memória de crianças duplamente negligenciadas, pela sociedade e pela história.
Uma fita de seda, uma bolsa vermelha, um rigor preto com a imagem de Santa Rita de Cássia, uma medida vermelha com letras brancas, três contas vermelhas, uma moeda partida ao meio e presa a uma fita cor de rosa, uma carta de jogar onde está escrito o nome “Jerónima”… A preservação de escritos ou bilhetes soltos, cosidos ou colados nos livros da Roda, é uma das características marcantes do arquivo da Casa da Roda do Porto. São escritos e sinais deixados com os expostos no momento do abandono, certidões de baptismo, guias manuscritas ou impressas de criação dos expostos, recibos de pagamento, certidões de capacidade das amas, de estado dos expostos e de falecimento, todas passadas pelos párocos das freguesias das amas ao serviço da instituição. O confronto com as palavras, em muitos casos escritas pelo próprio punho de um dos pais, nas notas deixadas com as crianças, revela-se um mergulho inquieto nos sentimentos, nos laços afectivos universais e intemporais, que unem invariavelmente pais e filhos.
O modo como foram criadas as instituições da roda em Portugal é relativamente bem conhecida e tem na sua base o alto infanticídio que existia em Portugal no final do século XVIII que, por muito tempo, e mais do que um crime, era visto como sendo um pecado. Sabe-se que cerca de 63 900 crianças foram expostas na “roda” do Porto entre 1690 e 1800, numa altura em que o número de habitantes da cidade rondaria os 30.000. Uma outra estatística revela que nesta mesma cidade o número de crianças reclamadas à “Casa da Roda” variaria entre os 3 e os 15%, conforme o ano do abandono. Quando estamos perto de celebrar os 35 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro do ano seguinte, eis uma exposição impactante e com um enorme sentido de oportunidade, marco maior da presente edição dos Encontros da Imagem.
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