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domingo, 13 de outubro de 2024

TEATRO: “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”



TEATRO: “As Grandes Comemorações Quase Oficiais do Período Histórico Habitualmente Conhecido como PREC (Processo Revolucionário em Curso)”
Textos | Joana Bértholo, Joana Craveiro, Jorge Louraço Figueira, Jorge Palinhos, Lígia Soares, Pedro Goulão, Rui Pina Coelho, Sérgio de Carvalho
Encenação | Gonçalo Amorim
Coordenação dramatúrgica | Rui Pina Coelho
Cenografia | Catarina Barros
Figurinos | Cátia Barros
Interpretação | João Miguel Mota, Eduardo Breda, Pedro Galiza, Teresa Arcanjo, Catarina Chora, Tomé Pinto, Inês Afonso, Pedro Quiroga Cardoso, Daniel Silva, Telma Cardoso, Maria Inês Peixoto
Produção | Teatro Experimental do Porto, ASSéDIO, Teatro Nacional São João
180 Minutos (com intervalo) | Maiores de 12 anos
Teatro Carlos Alberto
06 Out 2024 | dom | 16:00


“Na manhã de 25 de abril, quem ligasse a rádio ouviria imediatamente que algo extraordinário estava a acontecer, mas era-lhe igualmente solicitado (ou ordenado) que permanecesse em casa, a aguardar tranquilamente o desenrolar dos acontecimentos. É sabido que a revolução começou aí, quando tantos e tantas desafiaram essas instruções e encheram as ruas. Uma citação, provavelmente apócrifa, atribuída a Rosa Luxemburgo, sustenta que nada parece mais improvável do que uma revolução cinco minutos antes de começar e nada parece mais inevitável do que uma revolução cinco minutos depois de ter começado. O nosso olhar póstumo tende a debruçar-se sobre os acontecimentos de há cinquenta anos com um sentimento de incredulidade. A generalidade dos trabalhos historiográficos reforça esse sentimento, abordando o passado revolucionário não apenas como um país estrangeiro, mas como um local exótico, de contornos quase mitológicos. E, no entanto, para aqueles e aquelas que protagonizaram as greves, ocupações, mobilizações e conflitos do PREC, os mais extraordinários gestos foram quase sempre encarados como uma condição necessária a qualquer processo de democratização efectiva. Sem a liberdade de mudar e decidir, a democracia teria permanecido um ritual desprovido de significado. A revolução foi, pelo contrário, o tempo breve em que a democracia se exerceu e é precisamente isso que, cinquenta anos depois, lhe confere uma marca de profunda e irredutível alteridade face ao tempo morno que vivemos.”
Excerto do texto “Como parar um comboio prestes a descarrilar?”, de Ricardo Noronha
Investigador do Instituto de História Contemporânea (NOVA FCSH)

Extraordinária peça de teatro aquela a que assisti no Carlos Alberto, ao encontro do mais problemático e contraditório momento da história da democracia em Portugal, aquele que mais posições extremou, que mais fileiras cerrou, que mais esperanças matou. Extraordinária, pela força dos textos, desenhados em onze quadros escritos com os nervos à flor da pele, dados a ver em memória ou fado, em manifesto ou mensagem. Extraordinária, ainda, pela qualidade das interpretações, ousadas, irreverentes, à imagem e semelhança do momento que se ousou recriar. Extraordinária, enfim, pela mensagem que faz passar para estes tempos estranhos que vivemos, tempos acomodados, de espera, enquanto os inimigos da democracia, como vampiros, nos vão chupando o sangue pela calada. Alerta, povo, alerta. Às armas, se preciso for. Não adiantarei mais, abrindo caminho à Comissão de Festas Populares do Teatro Experimental do Porto e da ASSéDIO - Companhia de Teatro para que vertam, nos próximos parágrafos, “Enquanto houver força”, espécie de “manifesto” que integra o Programa de Sala da peça e que expõe, na perfeição, os princípios e valores desta peça, repito, extraordinária. [Pergunto-me como é que estas “Grandes Comemorações” nem uma semana estiveram em cena].

“O fim do PREC a 25 de Novembro de 1975 (se arriscarmos fazer uma datação precisa de um movimento tão fluido e tão complexo) não foi propriamente uma surpresa. Até certo ponto, tendo em conta a bipolarização geopolítica que emergiu da Conferência de Ialta (1945), o fim do PREC era inevitável - e até - muito provavelmente - desejado por todas as forças políticas organizadas, na altura activas em Portugal. Então, o Ocidente e o Leste olharam para a revolução portuguesa como um possível laboratório para a experimentação política. Simplificando (muito), para a esquerda - mais próxima ideologicamente do Bloco de Leste - o 25 de Abril seria uma espécie de Maio de 1968 tardio; e para a direita - mais próxima do capitalismo ocidental, a revolução portuguesa seria a primeira das transições democráticas que viriam a desembocar na queda do Muro de Berlim. Esquerda e direita usavam a história como um campo de batalha para a reconquista de uma narrativa sobre a sua própria cronografia.
 
Todavia, este espectáculo não é sobre o 25 de Novembro de 1975 e a previsível inevitabilidade da morte do Processo Revolucionário em Curso. Este é, sobretudo, um espectáculo sobre o fantasismo utópico e alegre que animou muitas cabeças, corações e mãos em Portugal durante os cerca de dezoito meses do PREC. É um espectáculo sobre o país que arriscou “assaltar o céu”. Mas é, também, um espectáculo assombrado pelas muitas derrotas e pelas muitas figuras trágicas que pairaram, espectrais, sobre todos os acontecimentos, durante esse período. Daí a nossa melancolia (de esquerda).

Neste espectáculo, contraria-se a tese de que, em 1974, após o 25 de Abril, se descambou num caos desordenado e excessivo. Ao invés, descobre-se no “dia inicial inteiro e limpo” e no processo revolucionário que se lhe sucedeu a eclosão de uma força popular sem epicentros coordenadores (um “abalo telúrico”, na feliz expressão de Fernando Rosas). No discurso político, o PREC rapidamente se transforma em confusão e desordem e a sua liquidação em sinónimo da institucionalização da democracia. Por seu lado, o 25 de Novembro tornou-se sinónimo da correcção dos perigosos excessos de uma imberbe democracia. Contudo, é a dimensão descentrada, libertária, espontânea, vitalista, popular, socialista e luxemburguista do PREC que mais nos fascina, ainda! Assim, entendemos, aqui, o PREC como mais uma das muitas batalhas travadas pela esquerda, alimentada pelo desejo de utopia, mas que, todavia, acabou derrotada... e que, por isso, é assombrada por revoluções passadas e, inevitavelmente, assombrará as revoluções futuras. Sim, as revoluções futuras, porque isto ainda não acabou. Este espectáculo desconfia da narrativa dos brandos costumes e de como em Portugal se fez uma revolução (quase) sem sangue.

Este espectáculo desconfia da narrativa de que houve um bando de brutos analfabetos que não souberam o que fazer com a liberdade que os soldados do MFA lhes atiraram para o colo. Este espectáculo duvida, também, da narrativa de que os dias do PREC foram loucos, excessivos, desorientados, a reboque de um bando de perigosos esquerdistas que tiveram de ser postos na ordem. Este espectáculo duvida da narrativa de que os portugueses não estavam preparados para a democracia. Este é um espectáculo que celebra a passagem dos cinquenta anos sobre o PREC. Este é um espectáculo dedicado a todas e a todos os que ainda conseguem estar motivados. Sim, motivados, porque isto ainda não acabou.”

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