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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

LIVRO: "Cimo de Vila"



LIVRO: “Cimo de Vila”,
de Carlos Tê (textos) e Manuela Bacelar (ilustrações)
Ed. Edições Afrontamento, Setembro de 2010 (2ª edição, Outubro de 2016)


“A furgoneta ancorou no largo e abriu a porta de trás. Passaram dois miúdos e espreitaram-lhe para o bojo. Esperavam ver brindes, bolas, rebuçados, mas só havia livros. Ruminavam sobre tanta lombada quando chegou a Josefa, a mulher do tipógrafo do Comércio do Porto. Vinha trocar o Alexandre Dumas pela Odete Saint Maurice. Depois apareceu a Júlia, a aprendiza de modista. Demorou-se em negociações com o bibliotecário, queria arriscar uma leitura mais audaz, folheava um Aquilino como se aferisse a penugem dum veludo. Torcia o nariz a um Eça, pedia opinião sobre um Camilo. Acabou por levar um Júlio Dinis - à experiência. E um Corin Tellado - por segurança.”

É um Porto sentido, o Porto deste “Cimo de Vila”. Dado a ver nos textos de Carlos Tê e nas ilustrações de Manuela Bacelar, este é o Porto de Miguel Bombarda à Rua das Flores, de Aldoar a Campanhã, de Massarelos às Fontaínhas, da Ribeira até à Foz. O Porto da gente apressada e dos polidores de esquinas, das vizinhas entregues à lamúria e à má língua, dos empregados de balcão a congeminar subversões, dos rapazes que atiram piropos à porta dos cafés. Das vielas assoreadas pelo silêncio da tarde, das mulheres vazando tinas de água nas sarjetas, do linguarejar cerrado e fresco que deita foguetes e apanha canas. O Porto do cimbalino e dos azeiteiros, dos coradouros e das sameiras, do Zorro da Sandeman, dos bilhares do Imperial, dos bailes dos Fenianos. O Porto do cheiro a galinheiros do Bolhão, dos magalas e meretrizes da Viela do Anjo, do Carlinhos da Sé a vender pensos com voz de dama despeitada. Dos turistas com ar de basbaque em frente à Livraria Lello, do Setenta e Oito apinhado na Galiza, dos estudantes no Piolho, da madame chique que sai do sério, desce do vison e arreia a giga.

“Cimo de Vila” é um livro para ser saboreado. Página a página, no muito que descreve e no outro tanto que sugere, Carlos Tê oferece-nos um retrato vívido e sentido desse Porto do qual todos temos um pouco: Nos estados de alma votados à imprecisão como na genuinidade do modo de ousar, na espontaneidade de um carago (ou coisa pior) como na altivez de milhafre ferido na asa. Retrato que é sujeito e complemento do desenho de Manuela Bacelar, com o seu traço limpo e leve ou em lente distorcida, ora expressivo, ora caricatural, em cujos apontamentos subtis podemos deparar com Picasso ou Miró, Chagall ou Toulouse-Lautrec. Um Porto que até podia ser Paris, de tão visitado que foi pelo senhor Eiffel, que de torre tem a dos Clérigos, de armazéns a Marques Soares ou os Cunhas e de rio o Douro. É dele que sobe o cheiro da maresia, que no ar se mistura com o das castanhas assadas, quentes e boas, num tempo que é o de agora, outonal e húmido. Um tempo inspirador para um poema feito de abandonos e pardacentos, fechados e sentimentos, envolto numa música que é um verdadeiro Hino Nacional, que se canta com os olhos marejados de lágrimas no momento de carregar e estender a penúltima sílaba dos versos do refrão.

Que mais dizer? “Cimo de Vila” é um livro recheado de visões nostálgicas, que desperta histórias e recupera memórias. Que nos traz de volta os (agora) “requalificados” espaços do Águia Douro ou da Casa Africana e nos faz de novo temer os concílios de estorninhos que transformavam o Passeio das Cardosas num mar de caca. Nos leva ao encontro dos velhos a bater uma sueca no Jardim da Cordoaria, a vibrar com o Boavista campeão ou a sofrer as agruras desse mito urbano que dá pelo nome de Salgueiros. A comprar um cartucho de amendoins na Pérola do Carvalhido. A não perder uma só das noites do Fantas. A ir ao Sá da Bandeira ver a Sylvia Kristel, a atravessar a ponte em noite de S. João e a espreitar a rapariguinha do shopping do fundo da escada rolante. A sentir o nevoeiro que se levanta do mar e já só deixa ver uma parte do tabuleiro da Arrábida. A deixar-se intimidar pelas mulheres lânguidas que te chamam filho à porta das pensões e a sorrir com aquele crocodilo pendurado do tecto numa casa que vende carteiras e cintos em couro genuíno. Já ali, quem desce da Batalha, na Rua de Cimo de Vila.

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