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quinta-feira, 10 de outubro de 2024

TEATRO: "O Meu Amigo H."



TEATRO: “O Meu Amigo H.”
A partir de “My Friend Hitler”, de Yukio Mishima
Adaptação | Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu, Ricardo Braun
Dramaturgia | Ricardo Braun
Encenação | Albano Jerónimo, Cláudia Lucas Chéu
Espaço cénico | Albano Jerónimo
Figurinos | Nuno Esteves (Blue), Albano Jerónimo
Interpretação | Albano Jerónimo, Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes
Produção | Teatro Nacional 21
95 Minutos | Maiores de 16 Anos
FESTOVAR - Festival de Teatro de Ovar
Centro de Arte de Ovar
05 Out 2024 | sab | 21:30


“O que pode um Regime fazer quando aqueles de quem precisou, aqueles que manipularam as massas em seu favor, se tornam incómodos? O Regime não sobrevive sem a multidão, é certo, mas tem lugar para intermediários ou precisa de ser ele, no fim de contas, a controlá-la?” Estas e outras questões servem de base a “O Meu Amigo H.”, peça encenada por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu e levada à cena no Centro de Arte de Ovar, no âmbito da 31ª edição do FESTOVAR - Festival de Teatro de Ovar. Partindo de “My Friend Hitler”, um texto para teatro do japonês Yukio Mishima, escrito em 1968, a peça retrata as figuras históricas de Adolf Hitler, Gustav Krupp, Gregor Strasser e Ernst Röhm, usadas como porta-vozes para expressar as próprias opiniões do romancista e dramaturgo sobre os mecanismos do poder. De forma calculista, o enredo acaba por se converter numa parábola da própria História, estabelecendo o reconhecimento do poder como princípio de todas as relações. Faz-se tábua rasa das amizades, sentimentalismos são cartas fora do baralho, todos os meios justificam os fins. No final, só o mais forte triunfará.

Fazendo uso da escrita como meio de repensar o Japão do pós-guerra à luz da sua cultura e tradições milenares, Mishima mostra nesta peça a subversão dos princípios éticos quando só a vontade do líder conta. Palavras como pátria, vitória, glória ou imortalidade ecoam em discursos alucinados, animados pelo mais vincado populismo, estudados para erguer as massas em delírio. Lá estão os inimigos do povo, com os imigrantes à cabeça, alvos de todas as censuras e ameaças, bodes expiatórios perfeitos do mal que empurra para baixo sociedades constituídas por “gente de bem”, impedindo-as de recuperar o valor e a influência dos tempos de outrora. Não nos esqueçamos, porém, que crimes de ódio são precedidos por discursos de ódio e, nas palavras do “grande ditador”, aquilo que escutamos são os pequenos discursos dos “pequenos ditadores” que se vão instalando à nossa volta e ganhando espaço dia após dia. Foi assim com os tutsis no Ruanda, o povo rohingya em Myanmar ou as câmaras de gás em Dachau e Majdanek, Sachsenhausen e Auschwitz. É assim hoje, com os massacres em Gaza, perpetrados pelo exército de Israel.

Fadada para prender o espectador ao longo dos seus pouco mais de noventa minutos, a peça leva-nos até à noite das facas longas (uma de tantas), em que H. deixa de ter como amigos o militar e o intelectual sindicalista, assassinados juntamente com centenas de outros membros do Partido. Ao seu lado ficará o industrial do ferro, a quem a guerra enriquece (e não poderia estar em melhor companhia). Construída sobre um conjunto de diálogos densos, a mensagem é expressiva e acutilante, convidando o espectador a questionar os próprios silêncios, numa altura em que as voltas da História mergulham de novo em vãos por demais sombrios. Rigorosa e contida, a encenação destaca a força e intensidade do texto, trazendo os actores para mais perto do espectador ao mostrá-los numa dimensão fantasmagórica, quase caricatural, recorrendo aos grandes planos filmados em video e projectados em tempo real. Albano Jerónimo, Pedro Lacerda, Rodrigo Tomás, Ruben Gomes formam um naipe de actores competentes, segurando com firmeza a complexidade dos seus papéis. Uma peça que inquieta, interroga e clama por acção.

[Foto: Teatro Nacional 21 | https://www.facebook.com/teatronacional21]

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