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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

LIVRO: "Atos Humanos"



LIVRO: “Atos Humanos”, de Han Kang
Título na edição inglesa | “Human Acts” (© Han Kang, 2014)
Tradução do inglês | Maria do Carmo Figueira
Edição | Maria do Rosário Pedreira
Ed. Publicações Dom Quixote, Agosto de 2017


“Lá fora, uma leve tremura fazia esvoaçar o manto de escuridão que se ia formando. Estava na hora de se levantar da cadeira e sair do escritório mas, em vez disso, continuou onde estava, sem se mexer. Os flocos de neve que caíam em silêncio pareciam tão suaves e brancos como farinha de arroz acabada de moer. No entanto, não conseguia pensar neles como algo de belo. Hoje devia ser o dia em que esqueceria a sexta bofetada, mas a sua face já estava curada. Já quase não lhe doía. Por isso, quando o dia seguinte rompesse, já não seria preciso esquecer a sétima.”

A primeira nota de surpresa em “Atos Humanos” advém da narrativa na segunda pessoa que toma conta do primeiro capítulo. A escritora fala de alguém com a familiaridade que um “tu” pressupõe, mesmo podendo tratar-se de um perfeito desconhecido. É um artifício que obriga o leitor a deslocar-se para dentro da história, a tomar parte nela. Está dado o passo decisivo no processo de adesão ao livro, algo que ultrapassará em muito uma eventual relação empática, transformando-se num apego íntimo, num sentir comum feito de cumplicidade, compaixão e humanidade. Ao longo de seis capítulos, os protagonistas vão sendo dados a conhecer de forma circunstanciada, a matéria de que são (somos) feitos, a sua abnegação e coragem, a permanecerem como vínculo de união que nenhum bastão, nenhuma bala, é capaz de apagar ou destruir. Nas praças e ruas de Gwangju onde se amontoam os cadáveres, nos ginásios transformados em necrotérios improvisados, nos frios calabouços onde se tortura e mata, a barbárie emerge e, com ela, a luta de quem resiste, a força de quem diz não.

A segunda nota de surpresa tem a ver com o facto de podermos ver “Atos Humanos”, não como um romance, antes como um ajuste de contas com a convulsa história coreana recente. A Revolta de Gwangju teve lugar a 18 de Maio de 1980 e partiu de uma população descontente com as condições de vida pouco dignas e com políticas governamentais ditatoriais. A polícia e as forças militares do presidente da Coreia do Sul, o general Chun Doo-hwan, reprimiram as manifestações de forma brutal, controlando a revolta depois de uma semana de violência inaudita que terminou com um saldo de quase 250 vítimas mortais, embora os cidadãos de Gwangju argumentem firmemente que os mortos ascenderam a vários milhares. Han Kang, então com nove anos, não viveu de perto os acontecimentos, mas os relatos que lhe foram chegando fizeram crescer em si a necessidade de expor ao mundo a sua visão dos acontecimentos. O resultado é pungente, um livro cru e doce ao mesmo tempo, uma homenagem sincera às vítimas do massacre, para que ninguém volte a profanar a sua memória.

A dureza dos relatos é realçada por uma escrita cirúrgica, atenta ao pormenor, geradora de imagens intensas e precisas que fazem o leitor atentar na história como se de um filme a passar no ecrã se tratasse. E aqui reside a terceira grande surpresa, a de estarmos perante alguém possuidor de uma escrita invulgar, capaz de nos fazer estremecer por dentro com uma simples frase. “A Mãe do Rapaz. 2010”, capítulo que encerra o livro, é das peças mais dolorosas e, ao mesmo tempo, mais poéticas que li em toda a minha vida. Nela, Han distende a abrangência da narrativa e trá-la até aos nossos dias, procurando compreender de que forma um evento desta magnitude moldou a vida dos sobreviventes. “O fio da vida é tão forte como o tendão de um boi. Por isso, mesmo depois de te perder, a vida teve de continuar”, diz a mãe do rapaz, expondo feridas ainda em carne viva, num daqueles actos humanos que buscam guardar a pouca dignidade que não lhe foi roubada. Um livro notável, de uma escritora recém-galardoada com o Prémio Nobel da Literatura.

1 comentário:

  1. Descrição sentida e pormenorizada de uma obra e de uma autora que ainda não li e que tenho curiosidade em conhecer. Obrigada pelo parecer, penso comprá-la e lê-la.

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