Páginas

terça-feira, 22 de outubro de 2024

TEATRO DE MARIONETAS: "Dura Dita Dura"



TEATRO DE MARIONETAS: “Dura Dita Dura”,
de Regina Guimarães
Encenação, cenografia, marionetas | Igor Gandra
Música | Michael Nick
Fado / canção | Ana Deus
Interpretação | Igor Gandra
Produção | Teatro de Ferro
50 Minutos | Maiores de 6 anos
Festival Internacional de Marionetas do Porto
Teatro Carlos Alberto
17 Out 2024 | qui | 15:00


“Era uma vez um menino pequeno, que vivia num país pequeno, virado para o grande oceano. Dizia-se que nesse país pequeno, grandes homens e homens de todos os tamanhos se tinham lançado no mar dentro, à procura de outros países e de outros homens. Mas isso tinha acontecido há tanto tempo que o menino de que estamos a falar nunca tinha molhado sequer os pés no mar. Dizia-se também que nesse país pequeno as pessoas tinham saudades de toda a espécie de coisas e que todos os domingos aqueles que viviam bem perto do grande oceano iam até junto da praia para daí ficarem a olhar as ondas a bater horas a fio. Era o passeio dos tristes. (…)”
Regina Guimarães

Passaram quinze anos desde que “Dura Dita Dura” subiu pela primeira vez à cena, no Museu da Marioneta, em Lisboa. A peça conta a história de um menino, o Baltazar, que nasceu algures numa terra pequena, rodeada por serras, onde só muito raramente vinha a camioneta do peixe e o cheiro do mar nunca chegava. Apesar de ter memória de elefante, perna de lebre, olho de lince e ouvido de perdigueiro, Baltazar era mudo. Tinha feito já sete anos, mas não ia à escola porque não havia escolas para meninos sem fala num país em que as pessoas falavam pouco. Toda a gente o olhava como se fosse uma galinha de três cabeças e chamavam-lhe coitadinho, em vez de Baltasar, que era o seu nome, do seu padrinho e do padrinho do seu padrinho. Sabia, confusamente, que não devia ser mais coitadinho do que todos os outros. Mas tinha imensa pena dos pais quando percebia que raramente o levavam à rua para não terem de ouvir coitadinho a cada esquina, nem terem de sentir mais culpa ou vergonha no país das pessoas culpadas e envergonhadas.

Nascido da necessidade de reflectir sobre o modo como, ainda hoje, a ditadura fascista revela a sua influência no modo como vivemos e sentimos o nosso país, “Dura Dita Dura” parte de um texto de Regina Guimarães para expor as marcas de um tempo retrógrado e miserável do nosso viver colectivo. Levados ao longo do país do passeio dos tristes, vemos o quanto as alegrias eram pouca e mal vistas, falamos com voz sussurrada porque as paredes têm ouvidos, escutamos os rapazes que andam na guerra e que vêm à televisão dizer “adeus e até ao meu regresso” (embora não se saiba quando regressam), ouvimos mulheres e crianças a rezar nas escuras naves de igrejas a cheirar a flores, a incenso e a cadáver, vamos em romaria de fé a Fátima e tememos por aqueles que arriscam a sua segurança e a da família ao pôr em causa uma doutrina fundada na trilogia “Deus, Pátria e Família”. É nesta atmosfera de terror surdo que a vivacidade de Baltazar, menino fora do baralho, conflitua com o obscurantismo que caracteriza o Portugal dos pequenitos que é o seu. Baltazar é um escândalo de silêncio num País silenciado. Mas não se escolhe o lugar e o tempo onde se nasce.

Ao brilhantismo do texto, junta-se o rigor cénico de um jardim sem cor, por onde se passeiam pequenas figuras como que petrificadas, reforçando a ideia de imobilidade permanente de uma situação da qual não se consegue sair. Marionetista experiente, Igor Gandra explora os tempos da peça com enorme rigor e inteligência, num registo de tragicomédia capaz de amarrar o público às cadeiras ao mesmo tempo que lhe põe um sorriso no rosto. Numa altura em que assistimos ao recrudescimento e normalização de políticas fascizantes, nas suas expressões mais brutais ou mais insidiosas, e vemos instalar-se uma progressiva repressão do dissenso - o exemplo mais recente é o tratamento dado em alguns países europeus (e não só) às vozes que protestam contra o massacre do povo palestiniano -, abracemos “Dura Dita Dura” como uma peça urgente no que tem de denúncia das políticas de silenciamento e ostracização daqueles que se atrevem a falar por seu livre pensamento. Um espectáculo que importa, não apenas pela sua dimensão histórica, mas também porque, levando-nos a refletir sobre o nosso passado, obriga-nos a arrepiar caminho em relação ao futuro. A história não se repete nem está escrita de antemão; por isso é tão importante voltar a esta história de um menino que vivia num país pequeno e emudecido pelo medo.

Sem comentários:

Enviar um comentário