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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: "A Pele do Mar" | José Miguel Reis



EXPOSIÇÃO DE FOTOGRAFIA: “A Pele do Mar”,
de José Miguel Reis
Proposta Fotográfica #86
iNstantes - Associação Cultural
Casa da Cultura de Avintes
05 Out > 30 Out 2024


“O fotógrafo faz o impossível: fixa a coisa fotografada. Fixa aquilo que, em absoluto, não é possível fixar: o movimento da folha na brisa ou no vendaval, a corrida da gazela na estepe, o balançar ininterrupto do mar. O fotógrafo faz o impossível: acende a luz que ilumina a fruteira sobre a mesa, monumentaliza o instante, mostra a pele do mar. A fotografia vive destas duas impossibilidades, alimenta-se delas. O José Miguel Reis quis homenagear Sophia de Mello Breyner Andresen, no centenário do seu nascimento, fotografando o mar, gravando sons do mar e associando as fotografias e os sons com versos de Sophia. Esse mar que fazia parte da sua alma e da sua escrita. Mar inquieto, às vezes calmo, outras vezes bravo, sobretudo o da praia da Granja, onde Sophia costumava passar férias com a família e que a terá inspirado para algumas das suas histórias e da sua poesia.

Nenhuma fotografia vive sem a coisa fotografada, o referente, mas este tende a desaparecer, a apagar-se, a tornar-se num espectro. Assim é nestas fotografias de José Miguel Reis: o referente que lhes serviu de motivo – o mar da Granja – retirou-se, como acontece em todos os retratos. O retrato é retráctil, retira-se para trás. Aquilo que é retratado, seja o que for, ao ser delimitado, torna-se uma entidade separada e, de alguma forma, abstracta, isto é, raptada, retirada. E, mesmo assim, ou talvez por causa disso, ganha atractividade, poderes de atracção.

O que atrai nestas fotografias é a possibilidade de tocarmos a pele do mar, feita unicamente de luz e sombra. O grau de abstracção em relação ao referente é tal que o que aqui vemos é uma revelação: vemos a surpresa, aquilo que não vemos quando nos sentamos à beira-mar e olhamos o seu incessante vai e vem. O José Miguel fez mumificações do mar, construiu monumentos funerários para o mar. Dele apenas resta a pele e a voz. A voz, também indirecta, tecnificada, gravada, diferida. O mérito do fotógrafo reside no reconhecimento destes limites: a fotografia é uma construção. Aquilo que ali está representado aconteceu uma única vez: pela primeira e última vez. Uma fotografia pode ser reproduzida até ao infinito. Mas o momento em que o motivo foi aprisionado (este é o termo) jamais se repetirá existencialmente. Como afirma Roland Barthes, um dos que melhor falou sobre a fotografia, “a fotografia leva sempre consigo o seu referente, estando ambos marcados pela mesma imobilidade amorosa e fúnebre, no seio do mundo em movimento”.

A poesia de Sophia, enlaçada pela voz e a pele do mar, renova-as dentro de cada observador, torna presente o mundo por si construído, faz acontecer um anseio de vida, de renovação e de plenitude. A poesia ‘faz acontecer’, produz-se no momento em que ecoa no íntimo de quem a diz: até se desligar da voz (como escreve Sophia no poema ‘Epidauro’). A ‘instalação’ pensada pelo José Miguel Reis pretende evocar e envolver. Evocar Sophia pela sua poesia e a sua ligação ao mar. Envolver o visitante da ‘instalação’ neste imaginário, de forma a torná-lo parceiro de vivências. Em última instância, torná-lo participante da poesia: da poesia de Sophia e da poesia das fotografias. O melhor que se pode dizer dum objecto artístico é que ele tem uma poética. Em rigor, julgo eu, não há arte sem poesia: não há música sem poesia, nem pintura, nem arquitectura, nem escultura, nem cinema, nem teatro, nem fotografia… nem literatura. As fotografias de José Miguel têm poesia. E essa poesia que elas têm toca (na pele, pois não há outra forma de tocar) a poesia de Sophia.”

[Embora tenha perdido a oportunidade de, em tempo útil, falar aqui no blogue de “A Pele do Mar”, do fotógrafo José Miguel Reis, sou de opinião que valerá muito a pena partilhar o texto inserto na Folha de Sala que acompanhou a exposição, da autoria do Professor Nuno Higino. Pela justeza das palavras a propósito deste trabalho, pela clareza do pensamento, pela abrangência da reflexão.]

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