CONCERTO: João Bosco & Jaques Morelembaum Duo
Auditório de Espinho - Academia
25 Out 2024 | sex | 21:30
Corria o ano de 1972 quando o músico Sérgio Ricardo, um nome fortemente ligado a movimentos culturais como a Bossa Nova ou o Cinema Novo Brasileiro, sugeriu a “O Pasquim” o projecto “Disco de Bolso”. Mensalmente, o semanário ofereceria aos seus leitores um 45 rotações com duas músicas inéditas. O lado A seria dedicado a um artista renomado, enquanto o lado B lançaria um artista-revelação. O primeiro número chegou às bancas e teve, de um lado, Tom Jobim e “Águas de Março”, considerada “a melhor canção brasileira de todos os tempos”. Do outro lado, um desconhecido chamado João Bosco cantava a sua primeira parceria com Aldir Blanc: “Agnus Sei”. “Eu considero que as ‘águas de Março’ foram as minhas águas de baptismo”, recorda João Bosco, na pausa entre dois temas do concerto que esgotou, na noite de sexta feira, o Auditório de Espinho. Um concerto que foi como o folhear de um álbum de recordações, terno e nostálgico, abraçando uma carreira de mais de cinquenta anos e estendendo esse abraço a tantos e tão queridos amigos, de Aldir Blanc a António Carlos Jobim, passando por Ary Barroso, Moacir Santos, Dorival Caymii, Milton “Bituca” Nascimento ou Chico Buarque de Hollanda.
Dentro do abraço, com um calor especial, esteve Jaques Morelembaum, o músico que subiu ao palco na companhia de João Bosco neste que foi o último concerto de uma breve digressão que levou o duo, no espaço de duas semanas e meia, a oito países da Europa. São duas figuras com uma importância incomensurável na música brasileira e mostraram-no em Espinho, fazendo do tempo do concerto um tempo de celebração da MPB e de homenagem aos seus grandes mestres. A proposta dos músicos teve este lado festivo, começando com “SobreTom”, um tema instrumental dedicado a António Carlos Jobim e baseado no álbum de estreia do compositor no mercado fonográfico americano, em 1963, com “The Composer of Desafinado, Plays”. Houve, porém, a preocupação de integrar no alinhamento um conjunto significativo de temas da dupla Aldir Blanc / João Bosco e cujo carga política as tornou num símbolo da resistência à Ditadura Militar. São disso exemplo “Caça à Raposa”, “De Frente Pró Crime” e o incontornável “O Bêbado e a Equilibrista”, canção imortalizada pela voz de Elis Regina e cuja letra denuncia a censura, a prisão, a tortura e o exílio político. Uma muito subtil e oportuna chamada de atenção para os riscos que a democracia corre nos tempos de hoje e que não terá passado despercebida ao público de Espinho.
Foi com enorme facilidade que João Bosco e Jaques Morelembaum conquistaram o público, sobretudo a partir de “Nação”, os ritmos do samba a espalharem-se pela plateia, intensos e livres, pondo toda a gente a mexer. Na mesma linha, temas como “Milagre”, do próprio Dorival Caymii, “Maracatu, Nação do Amor (April Child)”, de Moacir Santos, “Isto É Meu Brasil”, de Ary Barroso ou “Incompatibilidade de Gênios”, do próprio João Bosco, fizeram as delícias dos presentes. Entre os muito intimistas “Sinhá”, de Chico Buarque, e “Desenho de Giz”, de João Bosco, tempo ainda para “Boca Cheia de Frutas”, o mais recente trabalho discográfico de João Bosco, “metáfora de futuro auspicioso, vindo não por acaso em língua indígena, num momento em que fica cada vez mais evidente que é dos povos originários que virá o adiamento do fim do mundo.” Dele escutámos “O Canto da Terra Por Um Fio”, escrito em parceria com o filho do cantor, Francisco Bosco, e também o tema que dá nome ao álbum e que nos traz sons de crianças, de pássaros, do canto yanomami: “waruku waruku waruku këëi moramakī waruku waruku waruku këëi” (“boca cheia, boca cheia, boca cheia, boca cheia de frutas, boca cheia, boca cheia”). Bocas e corações cheios de emoção e alegria, num concerto que garante um lugar especial nas nossas mais belas memórias.
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