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domingo, 8 de setembro de 2024

TERTÚLIAS LITERÁRIAS: "Conversas às 5" | Diogo Leite Castro



TERTÚLIAS LITERÁRIAS: “Conversas às 5”,
com Diogo Leite Castro
Moderação | Joaquim Margarido Macedo
Centro de Reabilitação do Norte
05 Set 2024 | qui | 17:00


Com as baterias carregadas após a pausa de Verão, as tertúlias literárias “Conversas às 5” regressaram ao Centro de Reabilitação do Norte para mais um final de tarde à roda dos livros e da leitura. Promovida por esta instituição de saúde, a iniciativa contou com a forte adesão de um público maioritariamente composto por utentes do Centro, que receberam calorosamente Diogo Leite Castro, o convidado desta 16.ª sessão. Aberto à partilha do seu mundo literário com a plateia, o escritor foi acolhendo com entusiasmo as questões que moderador e público colocaram ao longo de uma hora de conversa, a todos respondendo com enorme solicitude, franqueza e generosidade. Uma hora de puro prazer envolto em livros, olhando processos criativos, as possibilidades que se abrem perante uma página em branco, as “private jokes” que se escondem num lugar ou numa personagem, a fixação na secção de necrologia do JN, Cesare Lombroso, Mário Cláudio e a livraria Flaneur, os conceitos de identidade, eternidade e transcendência, o pensamento e a opinião, o real e o aparente, a mentira e a verdade.

Num espaço luminoso com o mar em pano de fundo, as primeiras palavras de Diogo Leite Castro foram para uma plateia onde pontificavam as cadeiras de rodas e que, olhada nos olhos, foi classificada pelo escritor, no melhor dos sentidos, de “muito impressionante”. Voltando-se para os livros enquanto “objectos transcendentes”, como canta Caetano Veloso, o escritor confessou que a leitura foi amor à primeira vista, “um amor que nunca me desiludiu, nunca me abandonou e que eu nunca abandonei. Um amor muito próximo da perfeição, o que tem um carácter transcendente, [uma vez que] amores perfeitos só no campo da transcendência.” Este amor deve-o a duas professoras de português que não esquece, bem como à escola e às leituras obrigatórias, “porque me orientaram sempre nos melhores caminhos”. Hoje, pode dizer que a leitura e a escrita servem, sobretudo, para o salvar: “Eu trabalho para ganhar a vida, mas a literatura entrou em mim para me salvar de um quotidiano hostil, difícil, que me obriga a tomar decisões complicadas. A literatura faz com que possa afastar-me de tudo isso e, em grande medida, salva-me.” Dos primórdios de uma relação apaixonada e apaixonante fica, ainda, a ideia de que “a leitura nos afasta das decisões difíceis da vida, ao passo que a escrita nos obriga a tomar decisões.”

A conversa evoluiu, muito naturalmente, para o processo criativo, com Diogo Leite Castro a falar de “exercício tortuoso” ao referir-se à escrita. “Parece-me que estou constantemente a liquidar personagens, a liquidar possibilidades”, diz. E exemplifica: “Quando digo que aquela personagem se desloca de casa para a escola, estou a destruir todas as outras possibilidades, o ir ao cinema ou uma ida à praia, por exemplo. Preocupam-me as ausências, o que gostaria de ter dito e acabo por não dizer. Mas a vida é mesmo assim, provoca-nos constantemente e obriga-nos a tomar decisões. É terrível a dialéctica que se estabelece entre o que se diz e o que não se diz, o que se escreve e aquilo que não se escreve.” Abordando o método de escrita, o escritor revela: “Tenho o texto aberto muitas horas, mas não estou sempre a escrever. Escrevo um parágrafo e paro, vou fazer outras coisas, regresso ao parágrafo, revejo-o, acrescento mais uma linha. (…) O livro acaba por ser um organismo vivo, que cresce à medida que se vai fazendo.”

Olhar os três livros que estão, literalmente, em cima da mesa - o livro de contos “Histórias da Vida Moderna” (2015) e os romances “Descrição Abreviada da Eternidade” (2020) e “Biografia do Esquecimento” (2024) - é o passo seguinte. O primeiro livro de contos parte de um conjunto de episódios que aconteceram com pessoas próximas do escritor e que, de alguma forma, tinham um lado hilariante. “Partilhava os contos com essas pessoas e, realmente, elas reconheciam-se nas personagens e tiravam um enorme gozo do que escrevia”, lembra. No meio desta corrente de textos que foram circulando, alguém pegou nos contos e decidiu publicá-los. Assim nasceu um escritor. Já o mesmo não acontece com os romances. Enquanto os contos refletem as vivências e experiências pessoais sem grandes filtros, nos romances percebe-se um distanciamento do real, substituído por pensamentos que o autor foi formulando, ideias que foi construindo, leituras que foi fazendo. Nesta medida “os meus romances acabam por ser a expressão de uma vontade de fazer algo mais ambicioso”.

Olhando ambos os romances, o moderador começou por estabelecer uma relação entre eles, fazendo vincar que é muito mais o que os une que aquilo que os separa. O processo criativo vem novamente à baila: “Uma pessoa que é bem disposta no dia a dia, tem sempre dentro de si uma outra que o não é. É essa outra figura que eu gosto de explorar porque, literalmente, é muito mais rica que o seu contrário. Por isso, os meus romances são povoados por personagens angustiadas, presas dentro do seu próprio labirinto, que duvidam de si e dos outros. São personagens que oferecem muito mais possibilidades à criação de um universo literário do que uma personagem para a qual está sempre tudo bem.” Do primeiro romance diz que fala de “contaminação” e de “crises de identidade”, do que já não somos ou poderíamos ser quando somos contaminados pelos outros. Dessa tomada de consciência resulta a procura de uma purificação física, esperando que essa purificação possa ser também espiritual: “De que forma o fazemos? Tomamos um banho e vestimos uma túnica branca, como o Cravel do livro.”

“Biografia do Esquecimento” não foi esquecido. Diogo Leite Castro corrobora a opinião de um conjunto de personalidades que sustentam que “todas as biografias ou auto-biografias tendem para o romance, e que todos os romances tendem para a biografia ou auto-biografia.” Porém, no caso concreto deste seu último romance, a questão pode colocar-se com toda a legitimidade: “Escrever sobre a vida de alguém que, aparentemente, não fez nada, será que vale a pena? O que é que vou escrever sobre aquela pessoa se ela não tem nada para dizer?” O que levanta duas questões não menos legítimas: “Será que a nossa biografia se resume apenas àquilo que fazemos? Ou não será que nós somos também o que pensamos, sonhamos, desejamos e gostaríamos de ser? O escritor responde: “Se formos capazes de ter sonhos e ideias, independentemente de os concretizarmos ou não, isso deve ser considerado para efeitos da nossa existência, da nossa biografia. Escrever sobre isso é muito mais estimulante do que escrever coisas tão banais, como “formou-se nesta data”, “seguiu esta ou aquela carreira”, “foi presidente aqui ou ali”, que é o que encontramos na Wikipedia.

Entramos na parte final da tertúlia e é tempo de abrir as questões à plateia. As respostas não se fazem esperar, com dicas para escrever nas mais variadas circunstâncias, dilemas confessados sobre o alívio ao terminar um livro e a angústia sentida quando o “síndrome de privação” ataca o escritor ao fim de algum tempo (“já passaram dois meses e ainda não escrevi nada, o que é que se passa?”), o escrever à mão ou em computador, os “gatilhos” necessários para iniciar um romance. “Estou a tentar escrever qualquer coisa e, neste momento, tenho três folhas que demoraram três meses a completar” é uma das últimas revelações, numa espécie de regresso ao princípio, às possibilidades que se abrem perante uma página em branco, à escrita como processo salvador, mas que dá muito trabalho. As últimas ideias vão para as pessoas que amamos e que, objectivamente ou de forma subtil, gostamos de pôr nos livros em jeito de homenagem, para os livreiros e as livrarias que têm a capacidade de se reinventarem e para uma Zundapp de estimação, “que falha sempre”. Uma muito merecida salva de palmas encerrou a sessão, com a promessa de que as “Conversas às 5” regressarão em Novembro. Estejam atentos.

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