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sábado, 14 de setembro de 2024

LIVRO: "Souvenir"



LIVRO: “Souvenir”,
de Marta Hugon
Ed. Tinta-da-china, Abril de 2024


“A mamã bem me tinha avisado. Ela embirrava com todos os meus namorados e dizia-me que eles só queriam o meu dinheiro porque eu era demasiado estúpida e gorda para terem algum interesse por mim. Mas era tão bonito, o Henrique. A beleza de um homem sempre foi a minha fraqueza. Dizem que o papá também era bonito. Não me lembro bem. A mamã dizia coisas horríveis sobre ele. Que nunca gostara dela e que me tinha trocado por outra família em Moçambique. Imagine, se calhar tenho uma data de irmãos pretos sem saber! Não que eu seja racista, não me interprete mal. Hoje em dia não se pode dizer nada.”

Uma professora de canto de meia idade que se apaixona pelo seu jovem aluno, um homem que perde a memória depois de um acidente de bicicleta, uma empregada doméstica acusada de roubar um objecto de valor e que é despedida, um engate num bar que termina da pior forma, uma ilha no Índico que transforma a vida de um visitante, uma chamada telefónica com uma forte carga premonitória, uma carta muito tempo guardada e que recupera uma vivência amarga, uma viagem relâmpago a Nova Iorque, uma praia distante que traz com ela o fim do mundo, uma entrevista que abraça uma grande história de amor, a memória como uma dádiva. Dádivas e lembranças que tornam presentes as marcas do passado, presentes que são desafios e convidam à quotidiana tomada de decisões, futuros que se abrem e fecham como velhas portadas batidas pela ventania. De incertezas e ambições, escombros e recomeços, se faz a estreia de Marta Hugon no pequeno grande mundo da ficção, através de um livro que revela uma autora perspicaz, delicada e sensível, de quem muito há a esperar.

Conhecida, sobretudo, pela sua voz e presença ligada ao Jazz, Marta Hugon surpreende-nos com “Souvenir”, um olhar pessoal em forma de livro que nos mergulha num presente dominado pela premência de amar e ser amado. Conjunto de onze contos cuidadosamente burilados, o livro exprime, de uma forma muito simples mas plena de significado, a urgência de uma palavra, de um abraço, de um beijo, como um escape ou uma libertação das sombras que vão caindo sobre as vidas de cada um, nesse terreno resvaladiço que conduz ao desamparo e à solidão. Realistas na sua essência, desenvoltos e desapaixonados, estes contos formam, na sua dimensão humana, um conjunto homogéneo e profundamente actual. A sua leitura pode não ser sempre fácil ou agradável, mas o teor é sintomático de um mundo tomado por uma deriva existencial, de uma angústia sem limites, mascarada por atitudes afirmativas, de uma violência latente, construída na base da hipocrisia e do fingimento, da arrogância e das relações de poder.

Testemunhos vivos do pensamento sincero e exigente da autora, os contos impressionam pela intensidade da escrita e pela sua depuração. Não é fácil encontrarmos numa primeira obra uma visão tão madura e tão bem estruturada, isenta de irritantes “apêndices”, na forma de parêntesis ou apartes. Focada em contar uma história e em fazê-lo bem, Marta Hugon não se desvia um milímetro do seu objectivo, dispensando o inconsequente e o fútil. Feito de objectos, lugares e músicas, o mundo pessoal da autora mostra-se de forma subtil neste desfiar de contos, fazendo do leitor um cúmplice no complexo exercício de desenterrar passados e abraçar presentes. Em parte ou no todo, o leitor pode encontrar em “Souvenir” um espelho de si próprio, naquilo que o viver implica de saber, mas também de fortuna e acaso. Na encruzilhada de todas as vidas, entre Lisboa e Nova Iorque, a ilha de Moçambique ou uma barragem no Alentejo, lá encontraremos também a nossa, ora altruística e solidária com a dos outros, ora desinteressada e profundamente egoísta. Saudem-se as decisões intempestivas, os monólogos meditativos, os telefonemas a meio da noite, os encontros furtivos. A vida existe para ser vivida.

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