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sexta-feira, 6 de setembro de 2024

LIVRO: "Faina"



LIVRO: “Faina”,
de Marta Pais Oliveira
Ed. Gradiva Publicações, Julho de 2024


“(...) fica a olhar o livro aberto em dois, e vem de lá de dentro um rapaz, quer saber se quer ajuda, ela diz que está só a ver, cruzam os olhares por um nico de segundo, e nesse lampejo ele diz-lhe que é bonita, sem olhar a forma como está vestida, os pés quase descalços, parecia olhar apenas o rosto, e no rosto saltava entre os olhos e a boca, és bonita, e ela continua a olhar as páginas cheias de mistérios, maiores do que os que o mar carrega, e isso é tremendo, e pergunta-lhe se sabe ler aquilo, ele diz que sim, és bonito, e nem o rosto inteiro lhe quis ver.”

“Todos diferentes, todos iguais”. Habituámo-nos a associar o “slogan” aos movimentos para a inclusão social de pessoas com deficiência e a mantê-lo presente em todos os momentos do quotidiano. Foi nele que pensei ao mergulhar no mais recente romance de Marta Pais Oliveira, atribuindo-lhe o sentido lato de “comunidade”. Na leitura de “Faina”, como o próprio título indicia, a comunidade é piscatória. Entre o mar e a duna, é nos areais a sul de Espinho que a vamos encontrar com os seus palheiros e barracões no cimo do vasto areal, “às quatro da manhã o primeiro lanço, lá para as oito o alar para terra”, redes estendidas sobre a areia que homens e mulheres demoradamente remendam, o mar que prende o olhar, mar de sonhos e de ilusões, mar de angústias e de muita dor. São gente diferente entre si, nas marcas que o corpo revela e nas ambições que lhes tomam a cabeça, mas igual quando chega a hora de juntar esforços e tirar do mar o sustento ou de chorar as suas investidas traiçoeiras. Gente diferente na forma de encarar os outros, mas igual no sentimento que botam ao mar, um fio atado entre todos como remendo de rede. “Gente do bairro é sangue do nosso sangue”.

É Espinho sim, embora o tempo seja outro. A urbe cresce com a chegada do “chemin de fer”, o advento do Casino, a Real Fábrica das Conservas. Era aqui que, nas épocas de maior movimento, trabalhavam quatrocentas pessoas, sobretudo raparigas menores e sem qualquer escolaridade. Vinham do bairro de pescadores e o magro salário ajudava nas contas da casa. “Ninguém quer viver uma vida sem possibilidades”. Sem uma cronologia precisa, percebemos que o tempo se desloca no livro, mostrando o quão ténues podem ser as diferenças entre os dias de ontem e os de hoje. O bairro é o mesmo, como são as mesmas as pessoas de sempre: O Ouve Lá, O Assobio, O do Cachecol, A do Guindaste, O Oh Diacho, A do Moreno, A do Mar. De ontem e de hoje é a mão que espeta melhor um travessão no puxo do cabelo, como são os barcos rivais à recaxia, a euforia de um grande lanço, os homens à conversa, as mulheres metidas na roupa suja a esfregar escamas de peixe e nódoas de vinho, o pontão que não trava o ímpeto das ondas, o andor pelas ruas do bairro até chegar à praia para a bênção do mar. Só os bois a lavrar o mar não existem mais.

Quem leu “Escavadoras”, o primeiro romance de Marta Pais Oliveira, sabe que a autora não escreve para facilitar a vida aos leitores. É de mares revoltos, de espuma, vento e rugidos medonhos que “Faina” se faz. De agueiros e marés vivas, de ondas que se entrechocam e monstros marinhos que abraçam os incautos e os arrastam consigo para as profundezas. Nele, o anoitecer de uns é mais vivo que a aurora de outros e a vida pior do que uma pedra espancada pelo mar. “Território sem lugares escondidos, onde mentira alguma sobrevive”, assim é “Faina”, um livro cem vezes posto de parte com a certeza de não se voltar a ele, cem vezes recolhido, sacudido da areia e da espuma do mar, estreitado com força junto ao peito como um filho rebelde que se abraça demoradamente num pedido de perdão. Entre a magia do realismo e o realismo mágico, “Faina” encerra desafios constantes, qual “Ulisses” gerador dos mais díspares sentimentos. Prepare-se o leitor para o despertar de um novo parágrafo, de uma nova linha. Para um mar alto de emoções. Pode ser medonho seguir na crista da onda, mas chegará a terra são e salvo. Porque “Faina” é também isso: Cura e salvação.

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