TEATRO: “Mercado das Madrugadas”
Ideia original, texto, encenação | Patrícia Portela
Bancas de mercado, adereços | João Gonçalves, Patrícia Portela
Direcção Técnica | Miguel Abras, Bee Barros
Figurinos | Fred Botta, Patrícia Portela
Composição musical, ambiente sonoro | Miguel Abras
Direcção musical | Maria Repas
Movimento | Vânia Rovisco
Interpretação | Ana Rocha, Beatriz Teodósio, Célia Fechas, David Costa, Diogo Dória, Elsa Bruxelas, Fred Botta, João Grosso, Miguel Abras, Miguel Baltazar, Mónica Coteriano, Patrícia Portela, Sara Alexandra, Vânia Rovisco
Produção | Prado - Associação Cultural
Co-Produção | Teatro Nacional D. Maria II, Teatro Aveirense, Rota Clandestina
100 Minutos | Maiores de 6 anos
Praça Dr. Joaquim Melo Freitas
10 Ago 2024 | sab | 20:30
Vieram do lado da ponte e instalaram-se ao redor da praça. Enquanto montam as tendas do “mercado das madrugadas”, cantam, conversam e riem, indiferentes aos turistas frenéticos, aos mirones que se juntam, à conversa das mulheres a fazer croché, às luzes que se vão acendendo e aos gritos das andorinhas no adeus a mais um dia. São floristas e vendedores de chá, mágicos e adivinhos, hipnotizadores e encantadores de serpentes, faquires e malabaristas, unidos na vontade de dizer que “o amanhã é inevitável e começa hoje!”. Não por acaso, escolheram este lugar por saberem que, aqui como em Lisboa ou Versalhes, Veneza ou Madrid, é na Praça que se come e dorme, se sonha e celebra, se chora, se humilha, se prende, se tortura e mata. No preciso local onde se queimaram bruxas, se mataram judeus, se decapitaram republicanos e fuzilaram anarquistas, os seus passos cruzam-se hoje com os dos académicos das revoluções, dos vencidos da vida, dos sábios das sargetas, das senhoras que vêm ao teatro com as amigas e do executivo saído da pastelaria e que chega à Praça ainda a comer o seu peixinho de ovos moles. Olhos nos olhos, pedem-lhes que escutem a Praça com atenção. Porque é na Praça que cada um prova pela primeira vez o que faz arder a garganta. É aqui que sente as fraquezas tornarem-se em forças, experimenta o que mete mais medo e aquilo que traz alguma esperança.
“Esta Praça está parada / na casa do ditador. / Este tempo está parado / por falta de tocador”. Na banca ao meu lado, Patrícia Portela prepara um “chá para limpar a alma”. Na água a ferver irá verter cardamomo e cravinho, coentros, salsa, canela e gengibre, “duas ou três raspas de limão e uma unha de ruibarbo”, noz moscada, rosmaninho e erva doce. Uma mezinha, que além de combater as doenças como a falta de ar, a tensão alta e a diabetes, as dores de dentes, as dores de costas e as dores de corno, também “é contra a inquietação, a inquietação, cá dentro a inquietação, a inquietação, a inquietação ainda”. Sorrio ao beber o chá. Recordo a promessa de ser o “Mercado das Madrugadas” um “Manual de Instruções para Revoluções Futuras”. Encaro a possibilidade de um lugar mágico onde encontrar a inspiração que levará à mudança. Como outros, penso no que é preciso para sair porta fora, furioso, lançado em todas as direcções na garupa de um cavalo (deve ser efeito do gengibre, eu que nunca andei a a cavalo). Afinal, talvez seja apenas uma questão de “fitness”. Assumirmos que somos capazes de quebrar uma ou duas regras por dia, só para nos habituarmos ao dia em que tenhamos de quebrar uma regra muito maior. Porque esse dia irá chegar, o dia da revolução, e então estaremos preparados. Uma revolução com duas pequeninas regras quebradas todos os dias, até ao dia em que, juntos, quebraremos uma regra gigante. Pelo menos, é isso que a peça nos diz. Por mim, começo já hoje!
“Não é fácil comer terra, quando se provou um pedaço de céu”. Lugar para todas as possibilidades, na Praça trocam-se impressões e acepipes, mas também propostas para os próximos cinquenta anos de Abril. Passos pisam a gravilha. Das gargantas sai a música da Grândola e a pele volta a arrepiar-se: “O povo é quem mais ordena / dentro de ti ó cidade”. Durante um minuto respiramos juntos e em silêncio a ideia memorável de uma greve geral no mundo. Depois, recuamos cinquenta anos e não temos liberdade, não podemos encontrar os amigos na rua, falta-nos os quinze tostões para o bilhete de autocarro, lemos livros às escondidas, vemos as nossas mães a chorar por aqueles que foram para a guerra, que fugiram da guerra, que foram presos por causa da guerra, que morreram na guerra. Pensamos em tanta dor arbitrária, em tanta lei absurda e eis-nos, de novo, na Praça, humilhados, sem saída nem futuro, a maldizer esta merda de ditadura e a sonhar num amanhã em que tudo pudesse ser diferente. Mas hoje é madrugada de 25 de Abril e o amanhã chegou. E nós, aqui na Praça, gritamos a plenos pulmões: “Acabou”. Cinquenta anos depois de Abril, podemos continuar a dizer “acabou”?
Aquilo que era a promessa de um lugar novo, caminhou lentamente para este lugar onde as pessoas são todos os dias mandadas à merda e ainda têm de agradecer. Vivemos escondidos de nós próprios, desiludidos, atormentados no desequilíbrio entre o possível e o real, entre o início fulgurante da democracia e os dias que se seguiram até hoje. Precisamos de voltar à Praça, de voltar a senti-la como o sítio onde podemos acreditar numa nova oportunidade, onde somos capazes de quebrar, de forma permanente, as regras diárias que nos atam, o modo de vida que nos mata. “Somos um brilho que corre, por entre margens diversas / Que lentamente percorre o seu destino as avessas / Mas é nas margens do povo que havemos que ser do ventre / Pra fazer um país novo, num sentindo bem diferente.” Os quadros sucedem-se e, com eles, uma força cresce nos dedos, uma raiva nasce nos dentes. Uma folha em branco é uma mensagem de protesto. Um corpo a tremer é, tal como um corpo imóvel, uma forma de protesto. O pão que é de um é de todos. E um escaramocho é… um escaramocho.
É noite cerrada e a Praça é a nossa casa. É bom sermos tantos na Praça, lugar de todos os encontros, de todas as possibilidades, de todas as revoluções, de todos nós, de todas nós. Fomos instigados a fazer uma pausa na rotina e agora só pensamos em transformações. Todas as Praças são de Versalhes ou de S. Marcos, são de Abril e são de Maio. A qualquer momento numa Praça pode acontecer uma revolução, pode celebrar-se uma festa, pode-se ser fuzilado. Pode-se sobreviver, morrer, testemunhar, olhar para o lado. Olhamos em redor e somos carrascos, vítimas e testemunhas, rebeldes e traidores. Somos aquele que dá a ordem para atirar, aquele que foge e se esconde, aquele que tapa os olhos para não ver o seu assassino, aquele que enfrenta as balas a peito aberto, destemido. O europeu com passaporte de luxo que quando a coisa aperta apanha um avião para um sítio melhor. O ilegal que mantém a cidade a funcionar e que depois é despejado quando já ninguém precisa dele. Somos o pobre de espírito, o que decide, o que se acanha, o que aceita, o que se revolta. Estamos todos aqui, mas quem somos? Quem queremos ser? Quem podemos ser? Quem conseguimos ser? Quem? Quem? Quem?
Fazer deste tempo um tempo de comunhão e diálogo sobre o futuro é o grande mérito deste “Mercado das Madrugadas”, uma peça que vive de um texto extraordinário de Patrícia Portela e da generosidade e nobreza de um punhado de actores, fortemente empenhados em quebrar o marasmo e a apatia em que caímos e fazer reviver a força e a emoção dos dias em que conhecemos a cor da liberdade. É fantástico ver como funciona tão bem esta mescla de veterania - extraordinários João Grosso e Diogo Dória - com uma juventude ousada e livre, combativa, participativa, que acredita e faz acreditar. Em Abril de 1974 saímos à rua, invadimos praças e avenidas, distribuímos cravos e abraços e gritámos “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais”. Depois esmorecemos, acomodámo-nos, desistimos. Deixo a Praça para trás e penso, incrédulo, no ponto a que nos deixámos chegar: a extrema direita nas ruas, a extrema direita no Parlamento, a extrema direita nas nossas vidas. Olho a lua, essa pequena unha que se reflecte nos canais. Ela traz-me as palavras de Manuel da Fonseca: “Ó meus amigos desgraçados / se a vida é curta e a morte infinita / despertemos e vamos / Eia!”. Ao longe, vibrante, ainda o eco dessa frase maravilhosa: “Eu quero tomar o céu de assalto contigo”.
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