LIVRO: “A Uma Hora Tão Tardia: Histórias de Mulheres e Homens”,
de Claire Keegan
Título original | “So Late in the Day: Stories of Women and Men”, 2023
Tradução | José Miguel Silva
Ed. Relógio d’Água Editores, Março de 2024
“Na sala ampla, acumulou mais turfa na lareira e bateu as natas. Depois saiu para o exterior com uma tigela e andou em volta da casa a colher amoras. Quando a tigela ficou cheia, olhou para as duas colinas. As nuvens mais brancas que alguma vez vira cerravam-se firmemente em volta dos cumes, como se nas colinas tivesse lavrado um incêndio do qual só restava agora fumo. Lavou as amoras, esmagou-as com um pouco de açúcar e recheou com elas o bolo. Pareceu-lhe um bolo bonito, ali pousado na mesa da cozinha. Pôs na mesa chávenas e pires brancos, pratinhos e colheres, dois garfos.”
Com “A Uma Hora Tão Tardia”, Claire Keegan oferece-nos três breves histórias de três mulheres, na sua relação com outros tantos homens. Nas vésperas do seu casamento, a mulher da primeira história junta todos os seus pertences e muda-se para casa do futuro marido. Aquilo que constitui uma alteração no ritmo e estilo de vida de ambos e que deve ser, objectivamente, um passo em frente na sua relação, acaba por se revelar uma decisão desastrosa. A mulher da segunda história ocupa aquela que foi a casa do escritor Heinrich Böll, Prémio Nobel da Literatura em 1972, no decurso de uma residência literária. O encontro com um estranho que pretende conhecer a casa, mas cujas intenções se revelam bem diferentes do que seria suposto, servirá às mil maravilhas o propósito de encontrar assunto para um momento privilegiado de escrita. Apesar da alegria de ter duas crianças e um casamento feliz, a mulher da terceira história “perguntava a si mesma como seria dormir com outro homem”. Comprar as prendas de Natal abre-lhe a possibilidade de pôr o seu plano em marcha, mas as coisas não poderiam correr pior.
“Histórias de Mulheres e Homens”, o subtítulo deste livro, funciona como uma “declaração de intenções” de Claire Keegan nesta sua obra, pequena em tamanho, mas extraordinariamente poderosa na sua intenção e alcance. Escritas de forma lúcida e muito precisa, qualquer uma das três histórias não dispensa uma boa dose de verdade, mas também de cinismo, na relação entre os sexos. Não são apenas três histórias de mulheres e homens, como o subtítulo do livro sugere, mas também, ou sobretudo, histórias de mulheres que tentam viver as suas vidas e de homens que as tentam contrariar. São três histórias reveladoras da elegância e requinte da prosa da escritora, que, no seu conjunto, têm para oferecer uma análise fria e cuidada das dinâmicas de género naquilo que é determinante para o sucesso ou o fracasso das relações: a generosidade e o egoísmo, o peso das expectativas, a compreensão e a rejeição, a crença nos valores, a cumplicidade e empatia. Nesse equilíbrio instável por que se pauta a vida a dois, o balanço mostra-se, cada vez mais, frustrante e doloroso.
O estilo de Claire Keegan, como sempre, é esparso e poderoso, próximo da escrita de Tchekhov, assumidamente a sua grande referência literária (na história que envolve a segunda mulher, o escritor quase faz parte da trama). Keegan sabe tocar nos pontos certos, conduzindo o leitor ao encontro da mulher e do que nela há de particular e idiossincrático, do cuidado com o aspecto pessoal, do gosto com a decoração, do gozo que sente em saber-se esperada e desejada. O homem, no seu contraponto mais simplista, “quer-se sujo e a cheirar a cavalo”. O feminismo, olhado de esguelha por muitos, mas também por algumas, associado às dinâmicas sociais de uma sociedade liberal rendida ao poder dos interesses económicos, fez com que o fosso entre mulheres e homens se cavasse mais e mais. Não por “culpa” deles, apesar de nos cruzarmos, cada vez mais frequentemente, com metrossexuais barbudos, de unhas pintadas e sobrancelhas arranjadas. Mas são elas, na sua essência, que se mostram ao ataque nesta verdadeira guerra dos sexos, clamando por autonomia, liberdade e justiça. Claire Keegan mostra-nos isto muito claramente. Mas também nos diz que há muito caminho a percorrer.
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