CONCERTO: Aldina Duarte
Aveiro 2024 - Capital Portuguesa da Cultura
Teatro Aveirense - Sala Aberta (Praça da República)
17 Ago 2024 | sab | 22:00
Genuinamente uma enorme fadista e uma laboriosa e comprometida cultora do fado, Aldina Duarte foi a convidada do mais recente momento da programação de rua do Teatro Aveirense, enchendo de graça e encanto uma nova “Sala Aberta”. Numa noite fresca e ventosa, a sua voz foi xaile generoso e aconchegante para o muito público que acorreu à Praça da República a escutá-la e que, de forma sentida, abraçou a espontaneidade e a emoção do seu fado, como se de um afago se tratasse. Aldina Duarte tem esta capacidade, exclusiva apenas de alguns, de pôr naquilo que canta a tristeza e melancolia que lhe parecem intrínsecas e que são marcas distintivas do próprio fado. Ao tom sofrido da sua voz, acrescenta o respeito pelas particularidades de cada fado, dominando como ninguém as pausas que os pontuam (leva de tal forma ao limite os silêncios em certos fados, que o coração quase nos salta do peito só de imaginar que poderá ter-se esquecido da letra). E, depois, tem esse dom único de ser como é, de se virar para a assistência após uma gargalhada e dizer, com toda a simplicidade e verdade: “É pá, desculpem lá… É que está mesmo a saber-me bem. Espero passar isso para vocês. É o que eu mais quero.”
“Trago dentro do meu fado / Uma figura de proa / E uma velha caravela / Que naufragou em Lisboa”. Foi com a poesia de João Ferreira Rosa e a música de Alfredo Duarte, do Fado Senhora do Monte, que Aldina Duarte abriu o concerto. Ao escutar cada uma das palavras deste “Auto-retrato”, ao sentir cada um dos seus silêncios, que também são música, percebe-se o quanto o fado e a vida estão nela tão intimamente ligados, dispostos a dar-se em arrebatamento e desejo, mas também em raiva e desespero. Extraídos de “Metade-Metade”, o seu mais recente trabalho, “Pisco-de-peito-ruivo”, “Duas Mãos”, “Primavera” e “Aprendiza” foram temas cantados ao longo do concerto, pondo o público, também ele, com um pé no fado e outro na vida. Com assinatura de Capicua, letrista improvável de um género tão singular, os temas pisam terrenos do fado, mas trazem com eles assuntos “de outros fados”, preocupações quotidianas que são da fadista e não menos nossas. Nem saudade ou nostalgia, inveja ou ciúme, sangue ou paixão. Antes silêncio e cativeiro, inépcia e cansaço, espera e solidão, o cheiro da terra molhada, um cedro velho, um planeta cada vez menos azul.
“Eu hei-de ser das cerejas / Da vertigem dos cardumes / Do mistério dos pardais”. João Monge, com a sua “Estação das Cerejas”, vem enriquecer o leque de poetas que se passeiam por dentro do fado no tempo do concerto. Também lá cabe a poesia de Manuela de Freitas e João Nobre, de Manel Cruz e Maria do Rosário Pedreira, da própria Aldina Duarte, vertida em músicas originais ou bebidas na tradição, do Fado Alcântara ao Fado Margarida, do Fado Ferreira ao Fado Carriche. “Quando se ama loucamente / Nada existe de outra forma”, diz-nos a fadista, tomada pela emoção de reconhecer nos talentosos Bernardo Romão (guitarra portuguesa), Rogério Ferreira (viola) e Francisco Gaspar (viola baixo), os cúmplices de uma extraordinária viagem, e por sentir que essa cumplicidade se estende a uma plateia completamente rendida. Momento de profunda religiosidade, “Senhora da Nazaré, rogai por mim / Também sou um pescador que anda no mar / Ao largo da vida aproei nas vagas sem fim”, é um momento único de espanto e comoção. Para o final, reservou a fadista duas pérolas: uma muito aplaudida guitarrada e um “Fado com Dono”, em cujos versos guardamos Aldina: “Diz quem já me ouviu cantar / Que, quando soa o meu canto / A terra inteira estremece / E os rios perdem o mar / E as pedras rolam de espanto / E até o mal se estremece”.
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