LIVRO: “Tentação da Prosa”,
de Luís Filipe Castro Mendes
Ed. Editora Exclamação, Maio de 2024
“Quem na sua infância sonhou em voz alta com as páginas dos atlas, com aqueles nomes mágicos que evocavam lugares deslumbrantes e passagens secretas, Samarcanda, Trebizonda, Siracusa, Ilha da Páscoa e Cabo de Horn, quem acompanhou a leitura dos livros de viagens com o percurso dos seus próprios dedos nos mapas que se abriam em frente, quem assim viajou na infância por todos os caminhos da imaginação chega ao final das suas viagens reais na vida à conclusão que o mundo todo que se lhe ofereceu era pouca coisa ao lado das extraordinárias promessas que os mapas traziam.”
Fruto da sua colaboração com o “Diário de Notícias”, Luís Filipe Castro Mendes escapa-se por momentos do lugar que reconhecemos seu por direito – a poesia! –, cedendo à “tentação da prosa” nesse “exercício frágil” das crónicas com assinatura semanal. Distribuídas por oito capítulos, as cem crónicas que preenchem o livro oferecem-nos uma visão abrangente e esclarecida do quotidiano e das preocupações do escritor, nele se inscrevendo um vasto leque de assuntos que vão da economia à política, das viagens aos livros, das memórias de infância à questão dos netos, dos que permanecem aos que partiram. São assuntos que nos levam ao encontro do “elefante no meio da sala” no momento político que atravessamos, da descrença na democracia que é terreno fértil para os populismos, do desprezo da escola pela cultura humanística e a sua instrumentalização por uma ética estritamente individualista e egoísta, dos cinco milhões de portugueses que tiveram de procurar lá fora o trabalho e a dignidade que aqui não encontraram. Mas também dos natais da nossa infância, do amor pelos livros, das memórias de Estrasburgo ou da “companhia pensativa das vacas” na magnífica “sala com árvores” que é um monte familiar no Alentejo.
“Com todo o entusiasmo da nossa emoção e todo o crivo da nossa razão”, lemos a páginas tantas, nisto residindo o cerne destas crónicas e das ideias que nelas se perfilam. Ao respeito com que cita autores de referência – Eça, Jorge de Sena, Raul Brandão, Eduardo Lourenço, Herberto Hélder, Nuno Júdice, Pessoa, Camões –, acrescenta Luís Filipe Castro Mendes o bem saber contar uma história, numa apurada combinação de inteligência e elegância, subtileza e humor. O que não o impede de se revoltar e de, perdoem-me a expressão, “chamar os bois pelos nomes”. Se há quem aplauda o empobrecimento dos que já são pobres, pois que se aponte o dedo à Sra. Lagarde. Se o jornalismo está doente, que se denunciem aqueles que desviam o olhar da realidade e a cobrem com o manto pouco diáfano das diferentes agendas dos vários sensacionalismos. Se as conquistas sociais no domínio da igualdade das mulheres, da legalização do aborto ou do respeito pelas diferentes orientações sexuais é cada vez mais posto em causa, pois que se acusem os Trumps, os Bolsonaros e os Venturas deste mundo.
“Acabado o livro, fico com a sensação de que Luís Castro Mendes se assume, por inteiro, nestes seus textos. Quero com isto dizer, por exemplo, que ele não hesita em carrear para as suas crónicas a alegria da vida familiar, gozada neste seu novo tempo. Aqui ou ali, pode não disfarçar alguma melancolia que o avançar do calendário lhe traz. Mas, do que deixa escrito, resulta o retrato claro de quem se sente de bem com o que a vida lhe trouxe, ou melhor, com aquilo que nela soube e pôde construir.” As palavras de Francisco Seixas da Costa, que podem ser lidas no prefácio deste “Tentação da Prosa”, espelham na perfeição o sentimento dominante ao longo das mais de trezentas páginas. A identificação com o autor no que nele há de ideal humanista e de pensamento político levou-me a saborear com particular emoção cada um dos seus textos e, de certo modo, a conhecer melhor a figura que se abriga por detrás da obra. Uma personalidade singular, amante dos livros e da leitura, que assume o desconforto e a alegria que pode advir do acto de escrever, que escolhe o fazer contra o lazer, que acredita, “contra todas as evidências”, na sobrevida do que escreve. E que, ainda por cima, é um confesso admirador de Tintim.
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