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quinta-feira, 15 de agosto de 2024

LIVRO: "A Palavra que Resta"



LIVRO: “A Palavra Que Resta”,
de Stênio Gardel
Edição | Cecília Andrade, Sandra Mendes
Ed. Publicações Dom Quixote, Maio de 2024


“Não tem mais a cruz, ela ficava aqui, foi aqui a última vez que a gente se viu, tu de costas olhou para mim, era meio-dia, como agora, e como no dia que eu passei aqui depois de falar com a mãe, ela tinha acabado de me dizer para pegar minhas coisas, as de fora e as de dentro de mim, e sair de casa, que a casa dela não era lugar pra gente como eu e meu tio, que o pai falou que só tinha um destino certo, ser só a lembrança sombria de uma cruz, nem que fosse a cruz de outras pessoas também, como as de Manuel e Pedro, porque ela falou que foram as minhas mãos, as minhas mãos e as mãos de Cícero, juntas, que pregaram essa cruz de tristeza na nossa casa, que deixou de ser minha casa, na casa dela e do pai, na vida dela e do pai, como meu tio tinha plantado a tristeza e o medo no coração do meu pai.”

Nascido no seio de uma família pobre, Raimundo desde cedo conheceu a lida dos campos. Apesar da grande vontade de aprender a ler e a escrever, o pai sempre lhe disse que “letra era para menino que não precisava encher o próprio prato”. Conformado com uma vida de trabalho, obrigado a trocar o lápis pela foice, Raimundo percebeu que o intento de aprender deveria, inexoravelmente, ceder o lugar à precisão do gesto sobre a terra. Perseguido, humilhado e castigado por um amor malquisto, aos dezanove anos viu-se obrigado a virar costas à casa e à família e a partir para longe, levando consigo apenas uma carta. Sem remetente nem destinatário, “encruado, sempre fechado”, o envelope resistiu ao passar dos anos, guardando palavras que separaram e ligaram a vida de duas pessoas. Na aula da Professora Ana, escreveu Raimundo o nome completo pela primeira vez. “Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a ler e escrever depois de velho.” É chegada a hora de pôr cobro ao desejo de saber o que a carta diz. Uma carta que abriga uma vida inteira.

Intenso, emocionante, penetrante, “A Palavra Que Resta” ocupa um lugar de destaque naquilo que levo de leituras em 2024. Galardoado com o National Book Award para a melhor obra traduzida de literatura, o livro tem dois trunfos a seu favor: Uma narrativa envolvente que encerra um poderoso segredo, e uma linguagem, na primeira pessoa, escrita como quem fala. O que de mais fascinante encontramos nesta história é a forma depurada como nos é apresentada. Uma história subtil, límpida, sem uma palavra a mais, ciente de que é nas coisas simples que reside a maior beleza. Seria fácil ceder à tentação de explorar a multiplicidade de emoções e sentimentos que se libertam de uma história pungente, mas Stênio Gardel soube dizer não à banalidade, trazendo para um plano de destaque a humanidade e universalidade das suas personagens. Além disso, o livro encanta pelo linguajar sertanejo, cultivado com enlevo numa prosa que é como uma toada, as palavras ritmadas, vertidas em graça e harmonia, as frases como versos de um poema de Vinicius ou Drummond.

“Homem com mulher, homem com homem não prestava, as pessoas falavam disso, homem tinha que achar era mulher bonita, homem que achava homem bonito não era homem, mas era homem e achava Cícero bonito!”. Tratando com enorme sensibilidade temas tão fortes como a atracção, o desejo, o desafio, a discriminação ou a rejeição, Stênio Gardel oferece-nos a imagem de Raimundo naquilo que nele há de mais íntimo, em conflito consigo próprio e com os que o rodeiam, obrigado que está a ocultar a sua homossexualidade. Sair de casa apenas veio provar que o preconceito de género, a discriminação e a mais pura maldade estão por toda a parte, levando-o a estabelecer novas formas de afecto e a viver acoitado, eterna vítima do enxovalho, do abuso e da violência física. Explorando o poder universal da palavra e o modo como, através dela, as relações adquirem forma e dimensão, “A Palavra que Resta” é um romance arrebatador que nos vem falar do exemplo de firmeza e coragem das minorias, dos marginalizados, reprimidos e violentados que vivem o dia a dia de cabeça erguida, mais livres do que os que se afirmam livres.

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