Páginas

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

LIVRO: "Depois de Marte"



LIVRO: “Depois de Marte”,
de Maria João Carvalho
Ed. Tigre de Papel, Abril de 2024


“(…) Quem disse que o Passado
devia ser o Futuro dos nossos brinquedos?
Se me entretenho a reinventar cowboys
é apenas porque morri
com aquele menino de Sarajevo.”

Como que a dividir “Depois de Marte” em três partes iguais, aquela faixa escura prendeu-me a atenção. Correspondia, percebi-o então, a uma espécie de livro dentro do livro ou, se quisermos, um capítulo marginal, uns inéditos “Diários de Sarajevo”. Foi por essa "ponta" que peguei, pelo registo das impressões de Maria João Carvalho durante a presença de cerca de um mês, em Agosto e Setembro de 1992, a fazer a cobertura para a Rádio Renascença do conflito armado que ficou conhecido como “Guerra da Bósnia”. Uma escrita a pedir racionalidade, em rota de colisão com a irracionalidade de um conflito que, nos 1606 dias que durou, foi responsável por verdadeiras limpezas étnicas que resultaram na morte de quase 100.000 pessoas. Factuais, resumidos, quase telegráficos, os registos da autora procuram afastar-se das emoções, num esforço que se revela inútil: Haverá sempre mais um domingo sangrento no mercado de Sarajevo, será cada vez maior o ambiente de tragédia permanente vivido nos hospitais, o número de soldados da Força de Protecção das Nações Unidas mortos ou feridos não cessará de aumentar e haverão cada vez mais snipers a aterrorizar a cidade, “snipers de ambos os lados, claro.”

“Um saco sem ar, a que não doem os buracos… / nem o frio. / Uma ferida esbocanhada e roxa.” A “porrada” que levamos com a leitura dos “Diários de Sarajevo”, não é nada se comparada com o “capítulo” de abertura, o livro “Da Guerra e Outros Poemas”, editado pela GRESFOZ em 1997 e agora republicado. A Bósnia ficou para trás, mas percebe-se que as “réplicas” da guerra não cessam de se fazer sentir no interior de Maria João Carvalho. A da Bósnia e a de Angola, guerras que acompanhou para os mais importantes órgãos de informação nacionais. A transição da prosa para a poesia é como um “mudar de pele”, o exterior couraçado e repleto de cicatrizes a ceder lugar a uma epiderme friável, fina e delicada, pronta a rasgar-se ao mais breve sopro. Nela encontramos, como signos, palavras e sonhos. Palavras que são “vírus às cambalhotas no estômago”, sonhos “próteses / das minhas meninas e meninos de Angola / que revolvem o lixo das hipóteses / com muletas de ramos de imbondeiro.” Também a raiva e o frio mais frio, fantasmas de fogo e de horror, ódios de futuros já inválidos, um cometa maldito sem cauda, neve vermelha nos mercados.

O último terço do livro abre com outro inédito, “luz da LUZ”. Nele, Maria João Carvalho sai dos “cuidados intensivos” e já se permite afastar o medo, dançar no escuro, viver mil vidas numa só. Mas há “Singapura em alerta máximo / com os prédios na obscuridade / mais claros / que toda a África esfomeada / transtornada de seres / que reluzem nada”, e com ela a inquietação, inquietação. Enfim, “Depois de Marte” é “o livro que fecha o livro”, conjunto de vinte e três poemas que lhe servem de título e que medem a distância entre a sanidade e a loucura. Estão lá o intelectual que queimou a biblioteca para se aquecer no cerco de Sarajevo, a sorte que mora na preservação dos estuques de bosta nessa ruína fenomenal que é Angola, o preso n.º 1858, o Putin das ideias loucas nesta nova guerra à Ucrânia. Maria João Carvalho soube distanciar-se, a pele parece voltar a endurecer, mas as cicatrizes, essas, couraça nenhuma no mundo, armadura medieval ou colete à prova de bala, disfarça ou apaga. No seu conjunto, “Depois de Marte” é o testemunho pungente de quem vive(u) a guerra e encontra, na paz improvável, a outra face da moeda.

Sem comentários:

Enviar um comentário