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terça-feira, 6 de agosto de 2024

LIVRO: "As Últimas Testemunhas"



LIVRO: “As Últimas Testemunhas”,
de Svetlana Alexievich
Título original | “Poslednie svideteli”, © 2013 Svetlana Alexievich
Tradução | Galina Mitrakhovich
Ed. Elsinore, Setembro de 2017


“Teria oito anos, ou talvez dez. Como se pode perceber a idade de alguém só pelos ossinhos? Pois não eram pessoas que lá andavam, mas esqueletos… Pouco tempo depois, ela adoeceu, não era capaz de se levantar e ir trabalhar. Implorei-lhe… No primeiro dia, arrastei-a mesmo até à porta, ela agarrou-se à porta, não conseguia estar de pé. Ficou deitada dois dias, e no terceiro dia vieram buscá-la e levaram-na numa padiola. Só existia uma saída do campo - pela chaminé… Diretamente para o céu…”

Nem dois anos tinham decorrido sobre a assinatura do pacto de não-agressão entre a Alemanha e a União Soviética e já Hitler rasgava o acordo e invadia o território soviético naquela que ficaria conhecida como a Operação Barbarossa. O ataque surpresa deu-se no dia 22 de Junho de 1941 e envolveu mais de três milhões de soldados alemães, agrupados em duzentas e sete divisões, com o objectivo de “aniquilar o governo judaico – bolchevique”. Entre as forças operacionais, destacaram-se os “Einsatzgruppen”, também conhecidos como esquadrões da morte, responsáveis pelo assassinato em massa de milhões de judeus soviéticos, ciganos, oponentes políticos e pessoas com deficiência física e mental. Em pouco mais de três anos, o número de judeus mortos durante a ocupação estima-se em dois milhões, 40% dos quais vítimas destes eventos de fuzilamento em massa. No final da guerra, em 1945, tinham morrido cerca de três milhões de crianças e, só na Bielorrússia, vinte e sete mil viviam em orfanatos.

Todos estaremos de acordo que a guerra é uma ofensa à razão, um insulto aos valores do direito e da justiça, da dignidade e do respeito humano. Mas haverá algo mais abjecto e horrendo do que as crianças apanhadas no meio dos conflitos, algo mais ignominioso e trágico do que a inocência sujeita à crueldade, ao sofrimento e à morte? É disto que nos fala(m) “As Últimas Testemunhas”, segundo livro da escritora e jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, galardoada em 2015 com o Prémio Nobel da Literatura. São testemunhos de crianças, nascidas durante a ocupação ou com idades até aos catorze anos à data dos acontecimentos, a quem a guerra roubou a infância. Sem cortes nem rasuras, sem comentários ou notas pessoais, o livro resulta num verdadeiro “memorial ao sofrimento e à coragem do nosso tempo”, dando nota das situações de completo caos e loucura vividas por estas crianças, sobreviventes no seio das trevas de uma guerra desumana e fiéis depositárias de memórias que são como feridas que permanecem abertas mais de meio século depois.

“Não quero recordar… Não sinto esta vontade, nunca sinto…”. A vontade de esquecer é grande, tão grande quanto a dor que se derrama destas “cem histórias sem infância”. O pegar à pressa nos poucos pertences e partir sem saber para onde, ouvir as bombas a cair ao redor sem um sítio onde se esconder, saber-se só no mundo depois de ver a família a ser fuzilada, ver a aldeia toda em chamas, sofrer os horrores da fome e do frio, querer e não poder chorar porque se acabaram as lágrimas. Ditos assim, duros e impressivos tal como foram vividos, os testemunhos abrem-se em carácter e verdade, revestindo-se de uma força evocativa que nos toca as cordas mais fundas da alma. As histórias sucedem-se, pondo à prova a nossa visão da história, do mundo, da guerra, da infância e da própria vida. O inimaginável vivido por estas crianças, o êxodo, a fome, o medo, a solidão e a morte, fazem com que os ideais de bondade e de coragem, de altruísmo, generosidade, sacrifício e humanidade que estas histórias também encerram, rompam as cadeias e se ergam, mais fortes e vivos que nunca. Para que o horror não mais volte a repetir-se.

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