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quinta-feira, 13 de junho de 2024

LIVRO: "Campo Pequeno"



LIVRO: “Campo Pequeno”,
de João Pedro Vala
Edição | Lúcia Pinho e Melo
Ed. Quetzal Editores, Fevereiro de 2024


“Então, fui lá para comprar uma cebolazinha e o tipo à minha frente, um homem aí com uns, pá, não te sei bem dizer, mas uns, para aí uns cinquenta anos, com aquele ar de quem é mais que os outros, estás a ver, desatou a apalpar as laranjas e a perguntar de onde eram e de onde não eram e o diabo a quatro, de Marrocos mas de Marrocos de onde, dizia o gajo, e eu comecei a incomodar-me, mas, eh pá, enfim, até aí tudo bem, uma pessoa tem de, tem de aceitar, não é (agora falava de forma exageradamente pausada, e, apercebendo-se disso, com medo de que a Laura perdesse o interesse, voltou a acelerar só um bocado); depois, o raio do homem começa-me a escolher os morangos, um a um, eh pá, juro, eu aí comecei, não é, eh pá, comecei a ficar pior que estragado, não é, é que não estás bem a ver, ó Laura, apalpa um, larga, apalpa outro, mete no saco, apalpa outro e mete-o no saco, e ainda me tem a lata de tirar do saco um que tinha acabado de apanhar e voltar a metê-lo no cesto, estás ver (…)”.

Abraçamos um livro de João Pedro Vala com a certeza de que não nos iremos deparar com aquele tipo de leitura que nos faz penar eternidades ou nos obriga a abandoná-la ao fim de umas quantas páginas. A sua escrita espelha um quotidiano do qual nos sentimos cúmplices, discreto na sua essência, despojado de artifícios, que nos faz sorrir das nossas fraquezas, desventuras e imperfeições. Dispensando o grande artifício, as histórias revelam-se plenas de ironia naquilo que a própria vida tem de irónico. Desperdiça-se o tempo em frente ao televisor a ver o Canal Hollywood ou o Roland Garros, elegem-se as citações à categoria de frases filosóficas, o “percebes” é um tique de linguagem que contamina os diálogos, discute-se política em defesa da hombridade do Passos Coelho e o sexismo ainda faz valer a sua lei. Aos domingos, acorda-se estremunhado, espreitando pela fresta a ver se é dia.

A tendência para falar a brincar de coisas sérias é algo que sabíamos de “Grande Turismo” ou do pequenino mas enorme “Muro”, divertidíssima peça literária que resulta de uma residência artística em Figueiró dos Vinhos. Em “Campo Pequeno” João Pedro Vala volta a surgir-nos na pele do narrador e a desenhar o mesmo olhar sobre a vida, embora distanciando-se dela o suficiente para que melhor a possamos observar. Vemos, então, o que distingue aquilo que, na vida, faz sentido (“casar em Outubro por ser mais barato e ainda se apanhar o tempo quente”) e não faz sentido (“não privatizar a TAP, agora tudo ser racismo, ler poesia, uma pessoa ainda descontar para a Segurança Social em vez de haver um sistema de pensões como deve ser”). Nestes pequenos nadas percebemos o reflexo de uma sociedade sem crédito nem ideias, acomodada e falha de iniciativa, a não ser a de se enforcar no coreto do terreiro, como o grande Toninho Mamas.

Laura e Heitor, Gabriel e Mafalda. Mas também Heitor (o pai do Heitor), Manuela e Francisco, Hugo e o pequenino Tomé. Uma freira semi-atropelada, um conquistador mongol, uma mulher roxa, um beatboxer amador, um casal sado-masoquista, um caçador ocasional, um cangalheiro que tira cervejas durante os Santos Populares, uma mãe negligenciada, um actor italiano, um jogador de futebol dos campeonatos distritais, um consultor chato como tudo e um cão. São figuras de uma história que, pontas ligadas, ilustra a demanda do autor sobre o sentido da vida. Entre a esperança e o desânimo, a norma e o desconcerto, todos eles são arquétipos de um quotidiano que cabe, inteirinho, num “campo pequeno”, fechado sobre si mesmo, feita de voltas que se sucedem numa lógica de eterno retorno. No final, não ficará das personagens grande coisa para contar, antes a ideia de identificação com o afã constante de quem se esquiva a uma bandarilha ou sobrevive a uma orelha cortada.

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