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segunda-feira, 10 de junho de 2024

LIVRO: "Biografia do Esquecimento"



LIVRO: “Biografia do Esquecimento”,
de Diogo Leite Castro
Ed. Ego Editora, Março de 2024


“O imbróglio, se é que podemos chamá-lo assim, tinha-se iniciado no dia em que conhecera o senhor Celestino. O problema é que, depois de ter falado com a Maria pela primeira vez, as coisas assumiram uma dimensão diferente, quase transcendental, e não sabia agora se estava a escrever a biografia do senhor Celestino, se a do Adriano Corvo, se a dos dois ao mesmo tempo, sendo que os dois (afinal) eram apenas um só. No declive da confusão, questionava-me se estaria a escrever, não uma biografia, mas antes um trabalho de investigação criminal. Curiosamente, tanto eu agora, como Adriano Corvo em 1983, tínhamos sido ilibados em condições semelhantes, o que me dava a impressão de estar ligado ao velho escritor por um tipo de explicação maior. Será que teríamos a mesmo fisionomia, a mesma correção de mãos para ter despertado, em tempos e momentos diferentes, os mesmos sentimentos de benevolência?”

“A mentira é a única verdade que o homem aceita sem discutir.” Ao colocar o leitor perante os conceitos de realidade e ficção, a frase de abertura de um dos capítulos do livro parece funcionar como um postulado da própria literatura. Em simultâneo, representa uma espécie de “carta de intenções”, porque é de literatura que “Biografia do Esquecimento” fala: da laboriosa arquitectura dos livros, da forma como as palavras se mostram maleáveis à medida dos interesses e das necessidades do autor, dos efeitos antagónicos que um livro pode provocar em quem o lê. Mas também dos escritos ou dos livros que se escondem por detrás de cada livro e que levam o autor a olhar para a literatura como “uma arte escura em que ladrões roubam ladrões.” Um livro que, de forma segura, percorre os meandros da escrita e nos convida a reflectir na forma como a literatura e a vida fazem companhia uma à outra, numa dura e inflexível lógica de repetição ou de eterno retorno.

Construído em torno de uma improbabilidade - um jornalista é contratado pelo senhor Celestino para que escreva a sua biografia -, o livro acompanha as diatribes de um processo que parece votado ao fracasso, desde logo porque não há nada na vida deste homem que parece afastar-se da vulgaridade, mas também porque o biografado não se mostra solícito em colaborar com o biógrafo. Estranhamente, este não desiste e, passo a passo, vai-se embrenhando num labirinto de dúvidas e inverosimilhanças que o estimulam a seguir em frente (“[o] que seria a vida do senhor Celestino, na sua infinita tristeza, se eu não me debruçasse sobre a sua insignificância?”). No cruzamento de acontecimentos, lugares e pessoas, talvez possa haver um motivo de interesse na vida do senhor Celestino. Na dele e na daqueles que, quais actores secundários, se vão movendo no miolo de uma geografia precisa, do Porto a Paredes de Coura, de Vila do Conde a Matosinhos, da Livraria Flanêur ao Centro de Estudos Mário Cláudio.

Engenhoso e expedito, “Biografia do Esquecimento” vive de uma escrita inteligente, feita de humor e ironia, a começar pelo próprio título. Mergulhado numa atmosfera insólita e misteriosa, o leitor entrega-se ao livro como se de um saboroso filme de série Z se tratasse. É nítida a visão que tem do açoitar o pedal da motorizada Zundapp para fazê-la arrancar e é vívida a forma como depois acompanha o autor em incursões desprovidas de lógica, o corpo fustigado pela chuva e pelo nevoeiro, a fome mitigada por um pacote de sugus, ao encontro de uma benzedura a culminar uma cena de sexo ou da morte patente no gume de uma faca. Os últimos capítulos são delirantes. A dúvida sobre quem escreve o quê adensa-se e, com ela, as vidas das personagens ganham espessura. Naquilo que têm de significado e alcance, a vida e a literatura correm agora a par, trazendo ao livro um tom de vertigem e fascínio. Numa derradeira piscadela de olho ao leitor, a biografia enfim concluída, o autor lembra o quão próximos, afinal, estamos uns dos outros.

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