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domingo, 9 de junho de 2024

EXPOSIÇÃO DE PINTURA: "A Melhor Terra"



EXPOSIÇÃO: “A Melhor Terra”,
de Susana Bravo
FLID - Festival Literário Douro
Espaço Miguel Torga
02 Mai > 07 Jul 2024


“Se eu hoje me esquecesse das tuas angústias, e tu das minhas, seríamos ambos traidores a uma solidariedade de berço, umbilical e cósmica; se amanhã não estivéssemos unidos nos factos fundamentais que a posteridade há-de considerar, estes anos decorridos ficariam sem qualquer significação, porque onde está ou tenha estado um homem é preciso que esteja ou tenha estado toda a humanidade.”
Miguel Torga, “Bichos”

Os conhecedores da obra de Miguel Torga farão notar que nela predomina o Homem e as suas relações, harmoniosas ou não, com a terra e com o mundo. Outros lembrarão que também a morte e a solidão são temas constantes na sua literatura, que revelam não só a amplitude universal do escritor, mas também a consciência da brevidade humana. Outros, ainda, particularizarão este ou aquele livro, marcantes pelo que representam de combate político e de crítica à ditadura salazarista. “Bichos”, publicado pela primeira vez em 1940, parece condensar em si mesmo todo este universo torguiano. Cada conto tem um protagonista animal cujos sentir, pensar e agir, são alvo da actualização e manipulação do autor, à medida das suas intenções: reflectir sobre a humanidade. Do domínio do universal e intemporal, os textos são, antes de mais, documentos do e para o seu tempo histórico – e os anos dos “Bichos” são, não o esqueçamos, os anos da ditadura salazarista e da franca difusão de um programático “Deus, Pátria e Família”.

À dimensão universal da obra torguiana e, em particular, a esse extraordinário livro de contos que é “Bichos”, vai Susana Bravo colher a inspiração para desenvolver um conjunto de trabalhos que, sob o título “A Melhor Terra”, pode ser visto por estes dias no Espaço dedicado ao escritor, na sua terra natal, S. Martinho de Anta. Contadora de histórias por excelência, encontrando nesse particular apego a base de um processo criativo que explora “o fundamental, ingénuo e antigo prazer que nós humanos temos com histórias, memórias e narrativas de ficção ou não”, Susana Bravo mostra-se exímia na forma como, através do traço, estabelece a ligação entre realidade e ficção, acercando-se, com as tintas e pincéis, daquilo que Torga fez com o papel e a caneta. Fiel ao seu estilo, entre o abstracto e o figurativo, vemos como dispersa pela tela os elementos significantes das suas narrativas e como, numa lógica próxima da banda desenhada, nos desafia a seguir improváveis fios de Ariadne e a descobrir onde começa e acaba cada história.

Percorrendo cada quadro, é com um misto de inquietação e euforia que cruzamos o nosso olhar com o do “calmo e digno” Nero, o Cão, ou com o voo livre de Vicente, o Corvo. Tenório, o Galo, evidencia a “grandeza da sorte” e Bambo, o Sapo, mostra-se “em comunhão íntima com a natureza”. Diante de nós desfilam também, Mago, o Gato, Miúra, o Touro e Cegarrega, a Cigarra. Falta cá Morgado, o Burro, mas em contrapartida temos dois Camelos. Farrusco, o Melro, está também ausente, fazendo-se representar por dois Periquitos. Mas a figuração pura e simples não é a “praia” de Susana Bravo e, daí, o pássaro ferido de morte, os homens sem rosto às costas dos quais adivinhamos as armas de caça, o jovem envergando com aprumo a farda da Mocidade Portuguesa, um triângulo invertido, uma sereia, um traje de luces, uma menina sentada. E sempre essa extraordinária profusão de cores, a afirmação da energia do gesto e do enorme apego à vida, tão fortemente evidenciados nos trabalhos da artista. A não perder!

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