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sábado, 8 de junho de 2024

EXPOSIÇÃO: "Rutura e Continuidade"



EXPOSIÇÃO: “Rutura e Continuidade”,
de Paula Rego
Curadoria | Catarina Alfaro
Museu do Côa
01 Dez 2023 > 28 Jul 2024


Na sequência de uma programação que vem privilegiando nomes maiores da pintura portuguesa, o Museu do Côa tem para mostrar “Rutura e Continuidade”, conjunto de trabalhos de Paula Rego centrado no período de reconhecimento e afirmação da artista em Londres, onde estudou e viveu a maior parte da sua vida. Dos anos 1980 surge-nos parte da obra que que justificou o seu reconhecimento internacional, incluindo séries referenciais do seu percurso como as litografias de Jane Eyre. Mais tardio é o conjunto de gravuras e pinturas “Sem título”, de 1998–2000, mais comummente conhecido como a “série do aborto”. Propõe-se, assim, uma abordagem diferente à obra de uma das artistas portuguesas contemporâneas mais conhecidas mundialmente, cuja personalidade insubmissa e o combate por uma liberdade de expressão levaram-na a declarar a sua independência dos movimentos artísticos do seu tempo e a uma redefinição constante da sua linguagem figurativa.

Na primeira sala, o tema da ruptura é abordado de forma directa como resultado das mudanças pessoais, sociais e artísticas vividas nos anos 1980 e que provocaram em Paula Rego uma vontade de libertação em relação às expectativas impostas quanto ao modo de “fazer arte”. A artista recupera o simbolismo dos animais provenientes das fábulas, dos contos populares, sobretudo na sua relação de dualidade ou metamorfose com o humano, ao estabelecer uma linguagem visual radicalmente nova para contar as suas histórias pessoais, criando um universo complexo e ambíguo em que os animais são criaturas com qualidades e comportamentos humanos atiradas para situações peculiares. Ainda nesta sala, podemos ver o interesse de Paula Rego pela Arte Bruta, numa altura em que descobre a obra de Jean Dubuffet em Londres, em 1959, o que muito terá contribuído para o fim do impasse criativo em que se encontrava. É, mais uma vez, um exemplo de ruptura, o encontro definitivo com uma linguagem pessoal reconhecida e valorizada no contexto artístico londrino e que lhe permitirá contar as histórias de forma mais direta e regressar à infância através de uma técnica livre e sem hesitações. 

Independentemente da importância e alcance das obras expostas, é para a série “Jane Eyre” que o olhar do visitante se dirige de imediato ao entrar na segunda sala. Inspirada no romance vitoriano de Charlotte Brontë, esta série de litografias coloridas mostra até que ponto a artista se deixou seduzir pelo carácter fascinante da sua protagonista, Jane Eyre, e sobretudo pelo modo como questiona as expectativas sociais sufocantes que pendiam, à época, sobre as mulheres. Apesar de todas as crueldades e obstáculos que se atravessam no seu caminho, Jane Eyre é a história de um amor triunfante entre a protagonista e o Sr. Rochester, mas Paula Rego faz também sobressair nas suas imagens um outro lado da história, que não é contada. A última litografia desta série, “Vem a mim”, é decisiva para o tratamento caracterial psicológico de Jane, sugerindo a sua complexidade, a sua hesitação em aceitar um destino que será sempre, de certo modo, sacrificial, como o céu tingido de vermelho sugere.

Na última sala, o olhar recai sobre o tríptico “Vanitas”, pela forma como a artista concebe, a partir de um conto fantasmático de Almeida Faria, a sua própria visão da “vanitas”, mas são as oito águas-fortes da série “sem título”, de 1999-2000, que prendem a nossa atenção. Conhecida como a “série do aborto”, os trabalhos derivam diretamente de obras realizadas antes em pintura e são reveladores das experiências traumáticas da artista, mas também de um sentimento de indignação perante a indiferença dos portugueses, traduzida em abstenção, no referendo realizado em 28 de Junho desse mesmo ano sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Musculadas, como a generalidade das personagens femininas de Paula Rego, estas mulheres mostram-se em dignidade, apesar da dor e da humilhação sofridas. Algumas apresentam os olhos bem abertos, revelando um assombroso conhecimento do que estão a viver. Tudo nelas é sentimento e emoção, tornando-se impossível desviar o nosso olhar. De forma intensa e viva, elas são inestimáveis testemunhas da importância do aborto seguro, apenas uma parte do notável legado de Paula Rego.

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