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segunda-feira, 17 de junho de 2024

CINEMA: "A Quimera"



CINEMA: “A Quimera” / “La Chimera”
Realização | Alice Rohrwacher
Argumento | Alice Rohrwacher, Carmela Covino, Marco Pettenello
Fotografia | Hélène Louvart
Montagem | Nelly Quettier
Interpretação | Josh O'Connor, Carol Duarte, Vincenzo Nemolato, Isabella Rossellini, Alba Rohrwacher, Lou Roy-Lecollinet, Giuliano Mantovani, Gian Piero Capretto, Melchiorre Pala, Ramona Fiorini, Luca Gargiullo, Yile Yara Vianello, Barbara Chiesa, Elisabetta Perotto, Chiara Pazzaglia
Produção | Carlo Cresto-Dina, Paolo Del Brocco
Itália, Suiça, França | 2023 | Aventura, Comédia, Fantasia | 133 Minutos | Maiores de 12 anos
UCI Arrábida 20 – Sala 8
17 Jun 2024 | seg | 16:00


"Quimera” é daquelas palavras que, na linguagem do quotidiano, caiu praticamente em desuso. Talvez não seja fácil entender e explicar o seu significado, tal como não é fácil descortinar-lhe o sentido nesta que é a quarta longa-metragem de Alice Rohrwacher, um filme desconcertante na medida em que, também ele, se apresenta de forma indefinida, numa quase impossibilidade de representar a sua essência de forma tangível. História de amores perdidos, viagem existencial entre passado e presente, fábula dos tempos modernos, parábola mítica e mística ou reflexo da nossa sociedade consumista, pouco importa a forma como cada um de nós o classifica. Na sua estrutura complexa, feita de camadas sucessivas, é desprevenidos que o filme nos apanha, convidando a que tiremos partido do seu visual deslumbrante, sem constrangimentos nem espartilhos de ordem cinéfila, apesar de nele podermos ver, se assim o quisermos, Klimov e Lanthimos, Kusturica e Fellini.

“A Quimera” começa com a sequência de um sonho na primeira pessoa e Arthur é o sonhador. Narrador digno de confiança mas de quem se desconfia, ele dá-nos a ver as imagens em super-8 de uma jovem, Beniamina, aquela que corresponderá o tempo do filme à sua quimera. Vemos as suas mãos em concha no rosto dela, um rosto de “mulher definitiva” e percebemos que todo o filme será uma demanda por algo que parece perdido para sempre. Beniamina aparecerá episodicamente, seja em sonhos ou em conversas com sua mãe, a serena Flora, mas esta refutará todas as tentativas de falar da filha no passado. A reacção de alegria ao ver Arthur regressar da prisão – onde cumpriu pena ao ser apanhado a profanar túmulos etruscos antigos para contrabandear os seus artefactos - sugere que todos nesta pequena vila italiana da Toscania se encontram, tanto espacial como cronologicamente, distanciados do mundo.

Alice Rohrwacher tem pautado o seu cinema pela conjugação de dicotomias: a da sociedade italiana pré-moderna e moderna, a complexa relação entre natureza e cultura, os conflitos entre crença e religião. Escapando aos dogmatismos, a realizadora mostra-nos todo um bando de “tombaroli”, ou ladrões de túmulos, cujo estilo de vida errante merece uma atenção muito particular. Ao lado deles há Italia (uma jovem brasileira, coscuvilheira, desafinada e “pau de vassoura”), espécie de contraponto moral e fiel da balança entre o bem e o mal. E depois há Arthue e o seu “dom” de Arthur, infalível na localização de tesouros escondidos no subsolo. Essa própria intuição nunca é questionada, mas o que está implícito aqui é que Arthur relaciona-se de igual forma com vivos e mortos. Visualmente, isso traduz-se em sequências brilhantemente executadas, em que a câmera faz uma pirueta de 180 graus, tocando os limites do enigmático. Uma abordagem reveladora da correspondência entre o que está vivo e o que está morto e que nos diz que o passado nunca é verdadeiramente passado.

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