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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

LIVRO: "Crónicas Fora de Jogo"



LIVRO: “Crónicas Fora de Jogo”,
de Patrícia Portela
Ed. Editorial Caminho, Agosto de 2022


“Fiquei a dormir no teu quarto, conheci os teus amigos, ouvi a tua música preferida, li os teus livros, vi os videoclips que gravavas no teu VHS. Não cheguei a ver nenhuma daquelas atrações que falam do Rio de Janeiro, nem a beber água de coco, nem a passear pelo paredão, nem vi lá a garota de Ipanema, mas ouvi muita música boa, e tive as melhores conversas da minha vida. No fim da estadia, e um pouco a medo, estava eu já quase a despedir-me, pedi à tua mãe se poderia ficar com uma das três únicas fotografias tuas que havia lá na casa. A tua mãe disse-me que eu podia escolher a que quisesse. E eu escolhi esta que tatuei no braço direito mal cheguei ao Porto.”

Depois de “Dias Úteis” e desse extraordinário “Hífen”, regresso à escrita de Patrícia Portela com o entusiasmo que é devido às coisas verdadeiramente estimulantes, que nos dão a segurança e a certeza de podermos acrescentar ao nosso olhar uma perspectiva diferente e, com isso, aprendermos a pensar (que é “diferente de acreditar, saber de cor, ou pior, fazer só o que nos dizem.”) Afastando-se do registo que encontramos nos títulos mencionados, “Crónicas Fora de Jogo” agrupa, em dois “blocos” autónomos, os textos de “Fio da Meada”, conjunto de vinte e cinco crónicas radiofónicas, difundidas semanalmente na Antena 1 entre 10 de Setembro de 2019 e 25 de Fevereiro de 2020, e uma selecção de quarenta e duas crónicas que escreveu para o JL, Jornal de Letras, Artes e Ideias, de Janeiro de 2017 a Agosto de 2021, sob o título “Na Hora de Comer o Treinador”. Um registo diverso, dizia eu, mas a mesma atenção felina, o dedo tenso no gatilho pronto a disparar, o mesmo dedo que toca agora a ferida, a escarafuncha e abre, revelando o podre encoberto e que importa extirpar.

O “Fio da Meada” tem num elevador o seu fio condutor. É nele que Patrícia Portela entra a cada terça-feira – “porque é às terças que a semana começa de vez” –, percorrendo para cima e para baixo os noventa andares deste mundo ao som de “Once in a Lifetime” dos Talking Heads, “Better Off Without a Wife” de Tom Waits ou “O Elevador da Glória” dos Rádio Macau. Parece-me vê-la sorrir antes de fechar os olhos e carregar num andar ao calhas “a ver se lhe sai a sorte grande e se não acerta no alarme”. Ler cada crónica é entrar uma e outra vez no elevador, ao abrigo do acaso, das circunstâncias ou de uma qualquer musa inspiradora que tocou na corda certa. Meio pé já está lá dentro quando a autora nos faz pensar na noção de trabalho (e de escravidão), nos milhares de crianças que entram ilegalmente no Reino Unido, na nossa falta de esperança como o maior obstáculo à mudança ou no ar que nos permite viver e nos asfixia por causa de um maldito vírus que anda no ar. (Penso ou não penso?) Entro ou não entro?

Neste afã de reportar, com o máximo rigor, a vida tal como ela é, a autora assume, no espaço de uma crónica, o papel de “um reformado, uma terrorista, um nerd, um pedaço de pão, uma fronteira, um assassino, uma mulher vítima de violação”. E de uma baleia, Tilikum, a “baleia assassina” que atacou a sua treinadora durante um show de entretenimento no parque de diversões de Orlando e que leva Patrícia Portela, num extraordinário exercício de interiorização do sofrimento do outro (no caso, um animal), a afirmar sem rodeios que “é hora de comer o treinador”. Esta primeira crónica da “série” JL serve de mote às restantes, cruzando o mundo em todas as direcções ao encontro da História. Com frequência, a autora apropria-se das personagens e das situações e traz-nos as estórias na primeira pessoa, acentuando o seu lado emocional e ganhando a nossa cumplicidade. Cada leitor julgará por si, mas há aqui descrições fortíssimas, que nos magoam e nos fazem, ainda e sempre, pensar. E há, claro, Patrícia Portela, observadora atenta, escritora exímia e (também) cronista de excelência.

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