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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

LIVRO: "aberto todos os dias"



LIVRO: “aberto todos os dias”,
de João Luís Barreto Guimarães
Edição | Francisco José Viegas
Ed. Quetzal Editores, Janeiro de 2023


“Já repararam
no bote (pintado a preto e branco)
naquela curva do rio onde
a cidade chega ao fim
dançando quase
ao acaso a cinco ou seis metros da margem
(um remo para cada lado qual
petiz ao acordar)
o ocre vivo
do crepúsculo enchendo de cor
o cenário onde ninguém o navega
nem o reclama para si?
A garça
já.”
[poema “Aquela garça ali”, de João Luís Barreto Guimarães]

Doze livros depois de “Há Violinos na Tribo”, edição de autor de 1989, João Luís Barreto Guimarães volta a inquietar-nos com “aberto todos os dias”, a sua mais recente criação. O livro surge menos de um mês após a distinção com o Prémio Pessoa 2022 e nele o poeta regressa aos pequenos-nadas de que a vida é feita, olhando de forma atenta o seu (e nosso) quotidiano. A familiaridade que brota dos espaços, dos tempos, das situações, gera no leitor a maior das cumplicidades. Lúcido e preciso, sem dispensar a ironia, o olhar de João Luís Barreto Guimarães traz ao nosso encontro as imagens e os sons dos dias repartidos entre a prática médica, uma caminhada à beira-rio ou os momentos passados à mesa do café. A sua poesia convida-nos a ver a cidade que se afadiga para ir jantar a casa, os pequenos avanços que trazem sempre retrocessos, a maçã de Eva a pedir uma segunda dentada, o cheiro a peixe frito que sobe desde a cozinha, os enfermeiros exaustos que saem de mais um turno, um ministro que mentiu. A isto respondemos com um sorriso, certos de que o convite é tudo menos inocente.

Sorrimos quando o poema se faz termo de utilização do livro, a pedir que seja lido e aceite. Ou quando começa a construir-se a partir do momento em que a página se vira sobre si. Ou, ainda, quando se explica, com calma, numa introdução à poesia. Faz-nos bem, o poema. Este poema de um minuto que nos leva a olhar o céu e a ver num relâmpago um electrocardiograma de Deus, nas unhas roídas luas que nascem dos dedos, no sol que passa exactamente por entre os gargalos das garrafas que estivemos a beber o solstício da amizade. Não conseguimos olhar para a poesia de João Luís Barreto Guimarães sem ver nela a vitalidade de Miguel Torga na sua relação com a terra, a musicalidade de Eugénio de Andrade na sua relação com a alma, a luminosidade de Sophia na sua relação com a vida. A diferença estará nas linhas, não aquelas com que o poema se cose, mas as que se aproximam ou se afastam de uma baleia que deu à praia sem vida, de um quarto de hora numa fatia de pizza ou de uma torneira que administra 30 gotas por minuto na boca do lavatório. Alguém tem de amar o vulgar.

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