LIVRO: “Líbano, Labirinto”,
de Alexandra Lucas Coelho
Ed. Editorial Caminho, Junho de 2021
“Quando as revistas estrangeiras vêm a Beirute entre guerras (ou desastres), Gemmayzeh é um daqueles bairros que aparecem descritos como “Soho-sur-mer”. Restaurantes do mundo, bares com DJ, artistas. Só que na porta de ferro deste restaurante alguém grafitou a vermelho um enforcado. Outro, a negro, na fachada. Uma legenda diz, em árabe: “Execução.” A outra: “Levantem-se das ruínas.” Não é Soho-sur-mer. É Beirute.”
Uma barreira que parece ser de betão serve de protecção à fachada do Ministério do Interior libanês. Está pintada com as cores da bandeira do país, três listas horizontais, a superior e a inferior num tom de vermelho escuro, a do meio branca. A negro, cedros desenhados em sequência despontam entre os muitos cartazes e fotografias coladas, as tags que se multiplicam, os grafitis. A palavra “REVO⅃UTION” prende a nossa atenção, as letras que formam a palavra “LOVE” inscritas a vermelho e invertidas. Na rua, as pessoas acumulam-se. Há gente que discursa de megafone na mão. Agitam-se bandeiras, erguem-se cartazes. Em muitos deles, a frase: “We want our money back”. É este o poder de uma fotografia. Uma das muitas que ilustram “Líbano, Labirinto”, o olhar de Alexandra Lucas Coelho a corroborar a narrativa, a prolongá-la, a vincá-la. Porque este livro é, para além da crónica, reportagem e ensaio que se abrigam na sua matriz, também um álbum fotográfico.
As primeiras páginas colocam o leitor no centro de um pesadelo, duas semanas e meia passadas sobre aquela que foi uma das maiores explosões não-atómicas da História. Os ponteiros marcavam as 18:07 desse fatídico 04 de Agosto de 2020 quando se deu o rebentamento das quase três mil toneladas de Nitrato de Amónio que há sete anos se encontravam armazenadas num silo gigante do Porto de Beirute. Recordo as imagens amplamente difundidas da onda de choque que avança sobre a cidade, estilhaçando tudo à sua passagem e causando mais de duzentos mortos, sete mil feridos e cerca de uma centena de desaparecidos. Agora, é ao lado de Alexandra Lucas Coelho, do seu tradutor Ali e de Aeesha, a namorada deste, que percorremos a rua Gouraud, “tão paralelos quanto perpendiculares ao mar”. Esventrados, sem portas, os andares térreos dos prédios são buracos. Rasgões insólitos nas fachadas expõem a intimidade das casas. Tapumes, improvisos, remendos, preenchem a paisagem. Das varandas restam os ferros agarrados às paredes. O entulho amontoado dificulta a progressão e único ruído é o do vidro partido sob os nossos pés a cada passada.
Ao longo de quase quinhentas páginas, Alexandra Lucas Coelho fala-nos deste Líbano e “de uma história que parece condenada a renascer das cinzas, a voltar às cinzas.” É assim há pelo menos cem anos, desde o estertor do Império Otomano. Metodicamente, a escritora dá-nos uma lição de História, começando na Grande Revolta Árabe e no acordo secreto Sykes-Picot de permeio com Lawrence da Arábia, atravessando as sucessivas ocupações israelitas, Musa al Sadr e o Movimento dos Desprovidos, a Guerra Civil que teve início em Abril de 1975 e se prolongou por quinze anos, até à Revolução de Outubro de 2019 (que Alexandra Lucas Coelho acompanhou, deixando-nos aqui nota desses dias de esperança e luta). Neste longo périplo, vamos reconhecendo algumas figuras – Arafat, Nasser, Ariel Sharon, Muamar Kadhafi, Bashar al-Assad, Ronald Reagan, Kissinger, Khomeini – e tomando contacto com outras – Hamed Sinno, Alireza Shojaian, Soha Bechara, Wajdi Mouawad, Lamid Ziadé, Charif Majdalani. Tudo isto de permeio com os compadrios e conluios, a corrupção, promessas de morte, carros bomba, massacres, Sabra e Chatila, o Hamas, a Fatah, a Jihad Islâmica, o Hezbollah, a Palestina. E Khiam.
O que “Líbano, Labirinto” tem de mais extraordinário é o desfilar de emoções que se derrama da prosa de Alexandra Lucas Coelho e contamina o leitor. Quem a conhece de livros como “E A Noite Roda”, “A Nossa Alegria Chegou”, “O Meu Amante de Domingo” ou o fabuloso “Deus-dará” sabe ao que vai sempre que abraça um novo livro seu. Uma vez mais, ela suplanta largamente as expectativas, oferecendo-nos um livro fundamental para a compreensão da questão libanesa, exemplarmente organizado num complexo puzzle de datas, locais e figuras, profusamente ilustrado com as imagens e as vozes que marcam cada momento e inspirador na medida em que nos deixa a certeza de que “quem pisa Beirute ama Beirute”. O profundo amor por esta cidade tão martirizada, pelas pessoas que não desistem dela, percebe-se em cada frase, em cada imagem que Alexandra Lucas Coelho partilha connosco. Generosa, combativa, ela faz eco daquilo que mais ouviu em todos os relatos, em todos os testemunhos: “Não parem de falar do Líbano, não nos esqueçam.” Não esquecemos. Não esqueceremos!
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