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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

EXPOSIÇÃO: “Maria Eugénia & Francisco Garcia - Uma Coleção”



EXPOSIÇÃO: “Maria Eugénia & Francisco Garcia - Uma Coleção”
Vários artistas
Curadoria | Maria de Aires Silveira, Cristina Azevedo Tavares, Raquel Henriques da Silva
Museu Nacional de Arte Contemporânea
18 Nov 2021 > 13 Dez 2022


“Francisco Garcia escolhia antes e aconselhava-se depois, como os coleccionadores devem fazer para aprender a sê-lo.”
José-Augusto França, 2016

Maria Eugénia e Francisco Garcia constituíram, nas décadas de 1960 e 1970, uma coleção de arte que manifesta as transformações de gosto artístico de uma burguesia cosmopolita, cada vez mais desligada das coações do Estado Novo, embora sofresse as suas permanentes consequências. Apesar dos constrangimentos da guerra colonial, pressentia-se que o regime se esboroava e a cultura estava na primeira linha da contestação. Era raro, na Lisboa de então, que o gosto pela pintura incidisse sobre artistas contemporâneos, trabalhando entre a abstração e a nova figuração, esteticamente atualizados e motivados por um mercado em inédita animação. Amigos de quase todos os artistas expostos, Maria Eugénia e Francisco Garcia eram também amigos e admiradores de José-Augusto França e procuravam os seus conselhos. Por isso, quando se começou a pensar expor a Colecção, ele escreveu para o catálogo o seu último texto, na casa de Jarzé, quando estava à beira de completar 94 anos. Neste território de amizades, destaca-se o convívio permanente com Fernando Lemos, o artista com mais obras na Colecção, Fernando Azevedo e Marcelino Vespeira, os expositores de 1952 na Casa Jalco, na Rua do Carmo, onde a aventura terá começado.

As várias expressões do abstracionismo divulgaram-se e foram conquistando o gosto dos públicos desde o final da década de 1950. Para muitos artistas, essa procura da expressão pictórica em si mesma mantém ligações expressivas com o mundo das coisas. É o caso das manchas encaixadas de René Bertholo ou da sobreposição divertida de quadros dentro dos quadros, proposta por Palolo, que lembram a dinâmica visual de um atelier. Também a acumulação de formas/coisas de José Escada tanto sugere um inventado alfabeto visual, como excessos da nascente sociedade de consumo. Outros pintores afastam-se deliberadamente das narrativas. Ou seja, as obras não contam histórias, mas perscrutam os dispositivos da visualidade, usando recursos científicos: Nadir Afonso, através da matemática, Vasarely ou Eduardo Nery pela recriação de fundamentos e recursos da óptica. Noutros casos, a geometria adquire uma espécie de vida auto-suficiente. Assim acontece com Victor Fortes ou Artur Rosa em que a pureza dos recursos abstratos propõe uma espécie de matriz dos objetos mais comuns.

A paisagem é um tema maior da pintura. Por vezes, os seus valores são essencialmente contemplativos: olhamos como se a pintura fosse uma janela invisível sobre o exterior, como pretendiam os renascentistas. Assim acontece com Carlos Botelho e Alice Jorge, no primeiro, num enfoque sobre os interiores da cidade, na segunda, numa vista à distância em que a paisagem encaixa no mundo. No caso de João Hogan, propõem-se agrestes caminhos, corpos densos abertos à contemplação em que a paisagem é mais conceito do que lugar preciso. Pelo contrário, Rui Filipe regista uma praia concreta que é, ao mesmo tempo, um lugar metafísico: a realidade dilui-se em infinita nostalgia. Há depois os pintores em que a ideia de paisagem surge sem intencionalidade: as manchas/cores entrosadas de João Vieira são uma caminhada de gente ou um lugar casual em que a terra e o céu se chocam? Os golfões de cor de Menez são um mar ou uma tempestade ou apenas a experimentação auto-reflexiva dos recursos da pintura? Absolutamente peculiares são as caminhadas-percursos de Joaquim Rodrigo que regressam à narrativa, mas fora dos códigos tradicionais: são histórias crípticas, primitivas (as pinturas das casas da Lunda); reactualizando o desenho infantil ou ingénuo, Rodrigo elaborou uma nova figuração que se manifesta em obras de excepcional qualidade, verdadeiros tesouros desta Colecção.

Uma coleção, construída em círculo de amigos e sem nenhuma intenção de estabelecer linhas direcionais ou canónicas, permite uma grande variedade de sugestões e curiosidades. A belíssima natureza morta de António Soares e os dois guaches de Almada Negreiros propõem um recuo ao Modernismo da primeira metade do século XX. Logo depois, somos envolvidos pelas experiências do tempo presente: por exemplo, com os ecrãs de Noronha da Costa que velam os motivos, assim estimulando a vontade de ver mais; ou, de modo muito diferente, o Retrato de Lourdes Castro, recortado como sombra em placa de plexiglas. Pode avançar-se para as marcações do surrealismo de Cruzeiro Seixas e para a fuga ao mesmo movimento por parte de Vespeira. Também Júlio Pomar, que nunca quis ser um pintor abstrato, acumula os motivos em conjuntos expressivos, quase feéricos, que obrigam o visitante a perscrutar as narrativas através da picturalidade. Há, finalmente, algumas particularidades que são sempre o cerne de uma Colecção: os objetos cerâmicos do amigo António Pedro, retirado em Moledo. Ou um pequeno retrato ou representação de figura imaginada de António Quadros, o artista do Porto tão raro nas coleções lisboetas. Vale a pena deambular porque há outras peças interessantes para ver: um jardim de Hilário Teixeira Lopes, o sensível e enigmático guache de José Júlio ou a força cromática da “Collage”, de Edgard Pillet, que havia exposto na Galeria de Março no seu curto e brilhante período de existência.

[Compilado a partir dos textos de Raquel Henriques da Silva que acompanham a exposição]

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