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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

CONVERSAS: José Tolentino de Mendonça



CONVERSAS: José Tolentino de Mendonça
Apresentação do livro “Metamorfose Necessária. Reler São Paulo”,
com José Rui Teixeira
Museu Nacional de Soares dos Reis
18.Dez.2022 | dom | 16:00


O cardeal José Tolentino de Mendonça esteve no Porto onde, na passada segunda feira, foi agraciado com o grande prémio da Fundação Ilídio Pinho pelo seu trabalho “na promoção e defesa dos valores universais” do que a Fundação diz ser a “portugalidade”. Actual responsável pelo Dicastério para a Cultura e Educação que tutela a rede escolar católica do mundo inteiro, Tolentino de Mendonça aproveitou o ensejo para se encontrar na véspera com os seus leitores, a propósito do lançamento do livro “Metamorfose Necessária. Reler São Paulo”. Promovida pela Quetzal Editores, a iniciativa teve lugar no auditório do Museu Nacional de Soares do Reis, contando com a presença de Rui Couceiro, escritor e editor, e do teólogo, investigador e editor José Rui Teixeira, a quem coube a tarefa de apresentar o livro. Apesar da forte concorrência mediática de uma final do Campeonato do Mundo de Futebol a decorrer à mesma hora, o espaço do auditório do Museu mostrou-se exíguo para as mais de duas centenas de pessoas que se deslocaram para escutar o poeta e ensaísta, com muita gente de pé a assistir à conversa e a permanecer para uma sessão de autógrafos que se prolongou por duas horas.

“Paulo foi o ser vivo por excelência. Quem não é defunto ao lado desse espectro incandescente? Não arrefeceu, nem arrefece. Ainda hoje, as frases das suas epístolas irradiam um deslumbramento interior, da natureza do calor. São filhas dele, carnais (…)”. Foi com a leitura de um excerto de “O Homem Universal”, um livro escrito em 1937 pelo filósofo e poeta Teixeira de Pascoaes, que José Rui Teixeira deu início à apresentação de “Metamorfose Necessária”. Com sensibilidade e afecto, passou em revista os onze capítulos que compõem o livro, começando por realçar o cuidado de Tolentino de Mendonça em contextualizar a igreja primitiva, um “contexto de diáspora”, marcado por “tensões entre as comunidades judaicas e as comunidades gentias”. Esta espécie de introdução ao pensamento e à obra de S. Paulo é feita “de um modo muito próximo e, simultaneamente, muito fundamentado”, espécie de “meio caminho entre um conjunto de leituras de natureza mais académica e a possibilidade de tornar próxima esta figura que guarda de nós uma distância aparente de quase dois mil anos.”

Referindo-se à construção do livro, José Rui Teixeira vincou que o trabalho literário por detrás da reflexão faz de “Metamorfose Necessária” um livro que resiste à “tentação academista”, antes é pensado “para todos os leitores.” O apresentador elogiou a preocupação de Tolentino de Mendonça em traçar uma “dificílima” cronologia de S. Paulo, referindo as suas viagens, as suas cartas, os seus contactos. De igual modo, realçou o cuidado em fazer com que o leitor possa entender “as funcionalidades do apostolado de Paulo”, bem como “o laboratório de criação das epístolas paulinas”. Percorrendo os capítulos da obra, José Rui Teixeira deteve-se no “importantíssimo” capítulo sétimo, que fala da “relação profunda entre as figuras de Paulo e Jesus”, desde esse “cair por terra” até ao chamamento e apostolado, orientado no sentido de “olhar o mundo, abrir perspectivas, criar diálogos e estabelecer pontes”. A “exegese belíssima” da carta a Filémon foi outro dos momentos do livro que o apresentador destacou, a par da possibilidade que Tolentino de Mendonça oferece ao mostrar o quanto, “implicitamente, o mundo de Paulo se assemelha ao nosso mundo”. Um livro que é, ao mesmo tempo, um desafio.

José Tolentino de Mendonça falou com entusiasmo deste seu livro, começando por sublinhar que “Paulo é um dos homens que mais acreditou no poder transformador da palavra.” É isso que sentimos ao ler as suas cartas dois mil anos depois, percebendo o quanto “a palavra gera mundos, rasga horizontes, coloca-nos em busca”. “Todos somos paulinos”, observou, lembrando que “a nossa maneira de pensar e de ser, os nossos hábitos, a nossa relação com o transcendente ou com a cultura, é marcada pela herança que este homem deixou.” Vincando o prazer de poder falar no espaço do Museu Soares dos Reis, Tolentino de Mendonça admitiu que "se Paulo tivesse que vir falar ao Porto, possivelmente escolheria um lugar de cultura”. E deixa uma serie de questões: “Quem era S. Paulo? Porque é que é um dos homens mais inovadores da história? Porque é que interessa a todos, crentes e não crentes? Porque é que noções importantes na arquitectura das nossas sociedades democráticas e abertas são ainda o reflexo de coisas que ele, de uma forma muito pioneira, começou por pensar e por propor.”

O momento que vivemos é, na opinião de Tolentino de Mendonça, “um momento muito difícil mas muito desafiador”, no sentido em que “oferece ao Cristianismo a possibilidade nova de partir à procura de si, do seu pensamento, das suas raízes, das suas vozes fundamentais e partilhar isso em termos culturais”. Não é surpresa para o orador que dezenas de pessoas se reunam para ouvir falar de Paulo porque esse interesse e essa disponibilidade existe em muitos lugares fora do espaço da liturgia. José Tolentino de Mendonça confessou que, na escrita deste livro, preocupou-se em “situar a reflexão teológica dentro do horizonte cultural e oferecer a todos chaves de antropologia, de linguagem, de conceitos, que todos possam entender e entrar em diálogo”, tal como Paulo fez. “Entrarmos no mundo de Paulo é uma enorme surpresa porque ele é absolutamente surpreendente”, referiu, instando o público a desvendar aquilo que diz ser “a força do pensamento, a audácia e coragem de Paulo, a sua palavra que, dois mil anos depois, ainda nos abala profundamente.”

Mantendo a tónica no papel inovador de Paulo, Tolentino de Mendonça referiu: “Paulo é aquele que estabelece uma ruptura; o mundo antigo termina com Paulo e começa o Cristianismo, o mundo novo, a modernidade, a contemporaneidade.” Também a importância da sua acção na criação de um “modelo de convivência social aberta” foi referido, algo que o apóstolo admitia ser a única forma de se manter fiel à memória de Jesus Cristo. Recuando ao episódio da Estrada de Damasco, onde Paulo encontra Cristo, o escritor falou de uma “metamorfose” que, começando por ser espiritual e interior, acabou por se traduzir na “capacidade de reinventar as relações humanas” e na “promoção da categoria da universalidade, a ideia de que todos nascemos iguais e com os mesmos direitos”, afirmada dois mil anos antes da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É desta metamorfose, “do contributo que Paulo dá, do contributo que o Cristianismo dá”, que o livro fala amplamente, mantendo sempre a preocupação de vincar que “esta metamorfose está em curso; o nosso pensamento metamorfoseia-se no pensamento de Cristo”. E conclui: “A metamorfose do Cristianismo não acabou”.

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