O concerto poderia chamar-se “Uma Noite com Judy Garland”, que o título cair-lhe-ia como uma luva. Foi esta a proposta do Auditório de Espinho para fechar um ano absolutamente extraordinário ao nível da sua programação. Abrindo um parêntesis, arrisco-me mesmo a dizer que, se houvesse forma de premiar o mais eclético, coerente, influente e precioso conjunto de propostas musicais em sala do país, o Auditório estaria na linha da frente a bater-se de igual para igual com as melhores pelo galardão. Retomando o fio à meada, foi de sonho o concerto oferecido pela Orquestra Clássica de Espinho e pela sua ilustre convidada, Isabella Lundgren, uma das mais importantes vozes do jazz da Suécia. Com ela vieram também o pianista Filip Ekkestubbe, o contrabaixista Niklas Fernqvist e o baterista Daniel Fredriksson, completando um maravilhoso conjunto de sete dezenas de intérpretes em palco. Tudo o mais foi a magia da música, assente na história daquela que, no silêncio da noite, desejou muitas vezes “apenas algumas palavras verdadeiras de amor de um homem, em vez dos aplausos de milhares de pessoas.”
A abrir o concerto, um medley instrumental serviu para espevitar os sentidos, mas a primeira grande surpresa surgiu quando Isabela Lundgren, irrompendo pelo palco como se quisesse passar despercebida, juntou à música a sua voz. E que voz! Potente, profunda e, ao mesmo tempo, doce e delicada, deu a primeira nota de encanto nesse intenso “Rock-a-Bye Your Baby”, colando-se à voz e à presença de alguém cuja vida e música, como veremos, vão muito além de “Over the Rainbow” e de “O Feiticeiro de Oz”. Ao longo de uma hora e meia, Isabella Lundgren cantou e encantou. Ofereceu o maior carinho e desfez-se em elogios à Orquestra e ao seu Director, Diogo Costa; abraçou duas jovens vozes femininas, Beatriz Alves e Catarina Gouveia, com quem partilhou o palco numa maravilhosa rapsódia; e falou, como se de um documentário fosse, da atribulada vida de Judy Garland, onde cabem a lenda e o mito, o poder e controlo da voz, a intuição e inteligência em palco, mas também os problemas devidos ao abuso do álcool e dos medicamentos, a exploração por quem se arvorou em dono do seu destino, a profunda depressão e a morte acidental por overdose de barbitúricos aos 47 anos.
“You Made Me Love You” levou o público ao encontro de uma Judy Garland que, com apenas 15 anos, foi apresentada a Hollywood ao cantar a sua admiração por Clark Gable numa festa de aniversário do actor promovida pelos Estúdios da Metro-Goldwyn-Mayer. “Zing! Went The Strings of My Heart” foi uma explosão de vida no vigor da juventude e “Me and My Shadows”, além de falar de Mickey Rooney, com quem a actriz e cantora viria a estabelecer uma sólida relação de amizade, fala também de obstinação, resistência e rebeldia. “The Trolley Song” traz-nos outro momento marcante na vida de Judy Garland, um momento de afirmação interior e reforço da auto-estima pela forma como Vincent Minelli, o seu primeiro marido, a filmou no extraordinário “Meet Me In St. Louis”. Em palco, com um coro de suporte formado por Beatriz Alves, Catarina Gouveia, Fabiano Oliveira e Pedro Simões, Isabella Lundgren soube realçar o lado romântico e, ao mesmo tempo, divertido, de uma canção que nunca teve o reconhecimento merecido, condenada a viver à sombra desse incontornável clássico de Natal que é “Have Yourself a Merry Little Christmas”.
“Judy Garland Medley” constituiu um dos momentos mais altos do concerto, não apenas pela graça de vermos Lundgren a cantar em dueto ou em trio com Beatriz Alves e Catarina Gouveia, mas sobretudo pela forma como Beatriz Alves mostrou ter a música na alma. É verdadeiramente invulgar aquilo de que é capaz esta jovem com apenas 15 anos e, se o futuro fizer com que siga a via do palco, muito vamos ouvir falar desta extraordinária cantora. O resto do concerto foi de confirmação, não apenas dos dotes vocais da convidada, mas também da qualidade de uma Orquestra que soube tocar “com o coração”. Completamente rendido, o público bebeu a beleza da música e a emoção que dela se desprende em temas como “The Man That Got Away”, “I Don’t Care”, “Get Happy”, “By Myself” ou “It Was Never You”, este último envolto em raro intimismo, cantado com o acompanhamento exclusivo do piano de Filip Ekestubbe. Guardado para o final, “Over The Rainbow” foi o remate perfeito de uma noite de sonho. Nos nossos corações ficam a Orquestra Clássica de Espinho e Isabella Lundgren que, em ternura e dádiva, renderam a mais sentida homenagem a Judy Garland. Ficam, ainda, as palavras que James Mason proferiu na cerimónia fúnebre: “A grande dádiva de Judy foi ter conseguido com que as lágrimas brotassem do próprio coração das pedras. Ela deu-se tão rica e generosamente que não há moeda nenhuma no mundo com a qual possamos retribuir-lhe”.
[Foto: Auditório de Espinho - Academia | https://www.facebook.com/auditoriodeespinhoacademia]
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