A memória vai-me pregando algumas partidas, mas estou em crer que foi em finais de 1987, no Coliseu do Porto, que escutei Rui Veloso pela primeira vez. Quarto álbum da sua carreira, “Rui Veloso” andava nas bocas do mundo ao sabor de temas tão marcantes como “O Negro do Rádio de Pilhas”, “Cavaleiro Andante”, “Porto Côvo” ou “Porto Sentido”. A estes juntaram-se “Bairro do Oriente”, “Sayago Blues”, “Um Café e Um Bagaço”, “A Rapariguinha do Shopping” ou o incontornável “Chico Fininho”, composições icónicas dos seus trabalhos anteriores, e o concerto saldar-se-ía por um conjunto de momentos exaltantes, de verdadeira euforia, recordados com ternura ao longo do tempo. São trinta e cinco, os anos que separam esse concerto do Coliseu e este a que assisti na noite do passado sábado, num Cine-Teatro de Estarreja com lotação esgotada. Trinta e cinco anos de um longo vazio que as vicissitudes da vida justificarão em certa medida. Daí que o reencontro tenha constituído um momento singular, de júbilo, mas também de gratidão pelo tanto que Rui Veloso me tem dado e continua a dar.
Viagem em modo acústico pela música do “pai do Rock português”, o concerto foi emocionante a muitos títulos. Alexandre Manaia e Eduardo Espinho revelaram-se dois extraordinários intérpretes, com as suas vozes e as suas guitarras a brilharem a grande nível, acompanhando na perfeição os quase vinte temas que integraram o alinhamento. Quanto a Rui Veloso, apetece-me parafrasear uma espectadora que, mesmo ao meu lado, aproveitando a pausa entre duas músicas, expressou o seu sentir, alto e bom som: “Estás na mesma!” Inspirado, quiçá, no verde que caracteriza a bonita região do Baixo Vouga Lagunar onde Estarreja se insere, Rui Veloso começou por cantar “Sei de uma camponesa”, com o público a replicar “sem campo sem quintal” e a provar que também sabia dessa camponesa. E mesmo sendo verdade que “como havia antigamente / Já não há canções de amor”, não será menos verdade que “o calmo improviso do poente” é o mesmo de há mais de três décadas, com o seu sabor das laranjas na falésia, o seu cantar dos rouxinóis nas redondezas, o seu sargo a assar no braseiro ou o seu desfiar da lenda de um Vizir de Odemira que, na ilha, plantou um pessegueiro e por amor se matou novo.
“Nunca me esqueci de ti”, cantamos, com “uma mão cheia de nada / E o mundo à cabeceira”, para logo de seguida escutarmos “A Explicação das Estrelas”, numa primeira incursão pelo projecto que, em 2002, juntou Rui Veloso, Jorge Palma, Tim e João Gil sob o nome de “Cabeças no Ar”. O que não tem explicação é aquilo que está a acontecer com as mulheres do Irão, “heroínas do ano” para a revista Time, a quem o artista dedicou “Saiu Para a Rua”, louvando a sua “luta pela liberdade”. E porque a notícia do dia foi a eliminação de Portugal no Mundial do Catar face a Marrocos, Rui Veloso não quis deixar passar em claro o malogro - “os mouros são danados”, disse, em jeito de desabafo - e dedicou a música seguinte à nossa selecção, nem mais nem menos do que “Voar Como o Jardel”. Das cordas das guitarras sobe um clamor que dá expressão ao “Fado do Ladrão Enamorado”, uma gargantilha a brilhar “no bico do teu decote” e a chamar por um “Primeiro Beijo”, como que a provar que “muito mais é o que nos une / que aquilo que nos separa!”
O primeiro momento de verdadeira apoteose viria então com “Porto Sentido”, hino à cidade do Porto como não há outro, as vozes a elevarem-se em uníssono, “da Ribeira até à Foz / Por pedras sujas e gastas / E lampiões tristes e sós”. “Maravilhosa esta diálise” - e quem o diz é Rui Veloso e não o saudoso Serafim Saudade - a envolver todos os presentes. “Beirã” mostrou que somos “um bichinho do betão / que nunca viu o alecrim” e “Lado Lunar” lembrou-nos que há lados solares que só duram um segundo. Entre ambos, Eduardo Espinho protagonizou um momento inesperado ao cantar “As Meninas da Ribeira do Sado”, naquilo que foi um abraço ao seu pai, Luís Espinho, dos Adiafa. Com “Rio abaixo rio acima”, os blues espalharam-se pela sala nesse longuíssimo (e maravilhoso) intróito de “Sayago Blues”, prolongando-se no genuíno e autêntico “hino nacional” que é “Chico Fininho”. A fechar o alinhamento, “Não Há Estrelas no Céu” resultou noutro momento apoteótico, as palmas e gritos do público a estenderem-se por vários minutos e a obrigarem os músicos a regressar ao palco para um muito ansiado “encore”.“Um Trolha d’Areosa” abriu o momento e “Presépio de Lata” colocou-lhe um ponto final. Pelo meio, o último tema de grande emoção (e não foram todos?), “Anel de Rubi”, deu-nos a dimensão do quanto amamos Rui Veloso, consubstanciado nas inúmeras vezes que o ouvimos. “Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”, certo?
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