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terça-feira, 22 de novembro de 2022

TERTÚLIA: Música com História VI



TERTÚLIA: Música com História VI
Com Joel Cleto, Miguel Araújo, Capicua, Carlos Tê
Organização | Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos
Grande Auditório da Casa de Vilar
20 Nov 2022 | dom | 16:00


Um historiador, um músico, dois convidados, muita emoção e uma enorme empatia à volta de histórias, memórias e canções partilhadas com o público. Foi este o tom da sexta edição do Música com História, conversa a quatro vozes que se constituiu numa intensa e sentida evocação do Porto e das suas gentes. Mas antes de entrar naquilo que foram estas mais de duas horas de puro prazer, gostaria de realçar o labor da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos que, à sua vocação religiosa de promoção do culto público e do ensino da doutrina cristã em nome da Igreja, junta uma vasta obra social junto dos mais necessitados, sem descurar a promoção de um riquíssimo conjunto de eventos culturais visando o conhecimento e valorização do património material e imaterial da cidade e seus arredores. É aqui que se inscreve a iniciativa que, na tarde do passado domingo, fez esgotar os mil e duzentos lugares do Grande Auditório da Casa de Vilar, tal como sucedera já com as sessões anteriores, nas quais Rui Veloso, Sérgio Godinho e Pedro Abrunhosa juntaram a sua presença e a sua voz à dos “residentes” Joel Cleto e Miguel Araújo.

Porto de abrigo de um grupo de marinheiros que, em 1394, se organizaram em Confraria para dar cumprimento ao voto de erguer uma ermida a S. Pedro Telmo, por os ter salvo de um naufrágio quando navegavam de Londres em direcção ao Porto, Massarelos foi ponto de partida de uma conversa feita de presente – os concertos e a Feira do Livro no Palácio, os rissóis do Capa Negra -, mas também de passado – da Torre da Marca ao “zorro” da Sandeman, do outro lado do rio, ou à imperativa lavagem do carro, aos domingos, na Fonte de D. Pedro V. Guiados por Joel Cleto, de Massarelos ao Bolhão foi um pequeno salto, a “mão pesada” das vendeiras do mercado a soltar-se firme na voz de Capicua: “Grito sou guerreira, desnorteio, sou nortenha / E impero porque carrego o meu sonho convicta / Tripo, sou tripeira, de ferro sou ferrenha / E não nego que mantenho o meu trono invicta!”. Fala-se de mulheres do Porto, fala-se de mulheres do Norte e fala-se da mulher em geral, com Joel Cleto a vincar que “a História foi sempre contada muito no masculino” e que começa a devolver-se à mulher o lugar que ela merece, dando como exemplo D. Teresa de Aragão, mãe de D. Afonso Henriques, vista por muitos como “a primeira rainha de Portugal”.

No lento deambular pela cidade, do Bolhão ao Campo 24 de Agosto, evoca-se o cerco de treze meses à cidade, a Carta Constitucional, D. Pedro IV e Fernandes Tomás. Inesperadamente, a pergunta cai de chofre e tem Carlos Tê por destinatário: “O que significa o Tê?”. A resposta traz com ela a paixão de sempre pela música, sobretudo pelas novidades, pelo que se fazia lá fora nesses loucos anos 70 e 80, pelas muitas revistas e discos comprados, por aquilo que fazia de Carlos Alberto Gomes Monteiro um “tarado da música”. “Caiu o Éme, ficou o Tê”, conclui, e a viagem prossegue. Na Areosa vemos passar um certo trolha, “da Baixa à cantareira” vai o Chico Fininho e em Ramalde cruzamo-nos com um alfaiate. Esse mesmo alfaiate que “quer tomar pela última vez um galão no Astória, engraxar os sapatos por baixo dos bilhares do Imperial. Acima de tudo, ter um ultimo encontro com uma certa Laura na Viela do Anjo. E, no fim, comer umas Papas de Sarrabulho na Flor dos Congregados”. O momento é solene e remete para “O Porto a Oito Vozes”, um espectáculo (e um disco) memorável do grupo a capella Canto Nono, que Miguel Araújo recupera com a interpretação do sublime “Viela do Anjo”, letra de Carlos Tê e música de José Mário Branco.

A caminhada torna-se mais leve quando é passada a bola a Capicua. É ela que nos leva à Meca da cultura de massas “nos anos 80 e ainda hoje”. Não Nova Iorque, antes Vayorken, numa viagem aos seus tempos de criança, “mais Mafalda do que Susaninha”, “uma covinha só de um lado da bochecha”, “sempre vestida como um mini comunista / Com roupas que a mãe fazia com modelos da revista”. Também Carlos Tê recua no tempo, indo aterrar numa Revolução (a dos cravos, pois claro) onde descobre que tem “uma língua nova”. “A partir daqui valia tudo, até escrever poemas em português”, diz, realçando que “se o Chico (Buarque) escreve sobre o Rio (de Janeiro), eu também posso escrever sobre o Porto”. Porquê o Porto? “Porque o Porto dá-me jeito”, acrescentando: “Tive a sorte de ter o Rui (Veloso) a cantar as minhas letras”. Sobem-se os Guindais ao som da “Serenata do Norte” – “eu vou mais longe ainda e fico aqui” – e Miguel Araújo cita Gilberto Gil: “A minha música é o que ela quiser ser”. Mas também Michael Jackson: “Não escrevas música; deixa que a música se escreva a si própria”.

O resto da viagem faz-se a bordo do eléctrico. Não o 1 para Matosinhos e não o 9 que sai do Bolhão para S. Pedro da Cova; antes o 7, que vai à Ponte da Pedra. Com direito a pica e tudo. É dele que avistamos o Corredor Verde do Leça, resultado do esforço de recuperação de um rio que já foi um dos mais poluídos da Europa. Olhamos para o lado contrário e vemos a Circunvalação, imaginando na sua placa central o largo e profundo fosso que impedia a entrada na cidade, a não ser pelos locais de portagem. Essa mesma Circunvalação que serve de deixa para Capicua nos dizer: “Fino e francesinha, cimbalino e siga / Carvalhido acima até à Nandinha / Sou cria do Porto de corpo e sentimento / "Vai no Batalha" quem disser que isto é cinzento”. E da Batalha rumamos a Sul. Atravessamos o rio pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís e é justamente daí, “junto à Serra do Pilar” que avistamos o “velho casario”, “ (…) abandonado / Nesse timbre pardacento / Nesse teu jeito fechado / De quem mói um sentimento”. É arrepiante escutar mil vozes que se erguem em coro, embargadas de emoção neste abraço a um “Porto Sentido”, joia e hino da cidade. Em apoteose chegámos ao fim de uma viagem que parece só agora ter começado. E que bom que foi ter tido o privilégio de abraçar esta viagem!

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