TEATRO: “Kinski - Roi das Rats”
Conceito, direcção artística e performance | Rui Paixão
Direcção plástica, apoio dramatúrgico, máscaras e adereços | Cristóvão Neto
Desenho e execução de figurino | Lola Sousa, Nuno Encarnação
Produção | Les Subs, Rui Paixão/HolyClowns
50 Minutos | Maiores de 3 anos
Cine-Teatro de Estarreja
29 Out 2022 | sab | 21:30
Chama-se Kinski e é actor. Um actor problemático, acrescente-se. Caído no desemprego, sem as rotinas habituais a que estava obrigado graças às exigências da profissão, deixa-se vencer pela inércia, deprime e acaba por engordar de forma desmesurada. Entretanto, para sobreviver, abraça a carreira de vendedor de dentes de vampiro, mas a atitude deselegante e agressiva face aos seus potenciais clientes afasta-os irremediavelmente, deixando Kinski ainda mais desesperado e revoltado. Levado numa espiral de alienação e insanidade, acabará por se transformar num rato, espalhando o caos à sua volta e contaminando aqueles que com ele se cruzam. Este parece ser um bom resumo do espectáculo que Rui Paixão trouxe ao palco do Cine-Teatro de Estarreja, na noite do passado sábado. Será, pelo menos, uma leitura possível, quiçá a mais imediata. Mas são muitas as leituras que a peça oferece, a começar pelo actor problemático que é Kinski, remetendo de forma directa para Klaus Kinski, um génio terrível num actor magnífico, capaz de levar ao desespero qualquer realizador (que o diga Werner Herzog, que terminou uma cena de “Aguirre, o Aventureiro” com uma arma apontada à cabeça de Kinski, ameaçando matá-lo e matar-se em seguida).
Afinal, de que nos fala “Kinski - Roi das Rats”? Que mensagem ou mensagens pretendem Rui Paixão e Cristóvão Neto (que assina o apoio à dramaturgia) fazer passar com este trabalho? A questão não é de resposta fácil, desde logo tendo em conta que a própria peça se assume como um “work in progress”, a versão apresentada em Estarreja sendo diferente da versão inicial, estreada no festival “Imaginarius”, de Santa Maria da Feira, nos passados dias 27 e 28 de Maio. A animada conversa entre Rui Paixão e o público, no final do espectáculo, foi determinante para se perceber que há ideias muito claras que marcam uma boa parte da peça, assumindo Rui Paixão o risco de deixar o restante por conta do improviso. É bem patente a ideia do actor enquanto ser “particular”, caprichoso e volúvel, mas igualmente vulnerável e exposto, sobretudo numa época em que a precariedade tomou conta da cultura e seus agentes. O papel de Nosferatu, que Klaus Kinski representa no filme homónimo de Herzog, deixa uma pista para as figuras do vampiro e do rato. E depois há Roger Ballen, fotógrafo do submundo, cuja estética muito própria relaciona a arte com a imundície, o esgoto e os ratos.
Depois da transformação de Kinski em rato, é pedido ao espectador que se levante da cadeira e embarque numa viagem. À medida que os espaços se vão abrindo, aumenta a cumplicidade entre o rato e o público. Entender a peça passa por uma identificação com ela, algo que Kinski deixa bem vincado na mensagem inscrita no espelho, servindo-se das palavras de Ballen: “My house has no address. It is impossible to find unless you are a rat. It is in the underworld, a place of my rat mind, my human mind, your mind.” O espectáculo chega ao fim quando Kinski parte e deixa o espectador entregue a si próprio. É então que percebemos que existe em nós o poder de, ainda que noutro plano ou dimensão, continuar a alimentar os nossos sonhos e a fazer aquilo que mais gostamos. Esta será, porventura, a grande mensagem de uma peça que tem em Rui Paixão um actor de excelência. À enorme exigência física do papel de Kinski, responde o actor com uma entrega inexcedível, prendendo o espectador durante uma hora de teatro físico e psicológico de grande nível. Um forte aplauso, igualmente, para o trabalho de luz e para a concepção do figurino, de Lola Sousa e Nuno Encarnação, mais valias extraordinárias num grande trabalho de palco. Bravo!
[Foto: João Versos Roldão]
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