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domingo, 20 de novembro de 2022

EXPOSIÇÃO: "Chegar Sem Partir" | Rui Chafes


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EXPOSIÇÃO: “Chegar Sem Partir”,
de Rui Chafes
Curadoria | Philippe Vergne e Inês Grosso
Museu e Parque de Serralves
20 Jul 2022 > 05 Mar 2023


“O vazio é absoluto e só pode ser preenchido pela verdade (beleza), pela identidade e pela consciência do nada do próprio vazio. Só a forma e o vazio são universais. Tudo o mais é pó.”

Perseguindo o objectivo de promover e dinamizar a arte contemporânea nacional através da organização e produção de exposições monográficas com artistas portugueses de diferentes gerações e áreas de formação, o Museu de Serralves convidou o artista Rui Chafes para integrar a programação do segundo semestre de 2022 com uma grande exposição que se estende do interior do edifício projectado pelo arquitecto Álvaro Siza aos jardins exteriores. Com uma obra teórica conceptualmente ancorada nas premissas fundamentais do gótico tardio e do romantismo alemão, enriquecida pelas heranças universais de Marcel Duchamp, dos pós-minimalistas americanos e de artistas incontornáveis como Joseph Beuys, Chafes é um autor que se define por uma consistência e rigor incomuns, e que discretamente se tem mantido distante de tendências e preocupações politicamente intervencionistas. Amplamente representado na Coleção de Serralves, o artista tem sido uma presença regular na programação do Museu, participando de várias exposições no Porto, mas também nas instituições parceiras que integram o Programa Nacional de Itinerâncias da Fundação de Serralves.

“Chegar Sem Partir”, com curadoria de Philippe Vergne e Inês Grosso, em estreito diálogo com o artista, representa o culminar de anos de colaboração, assim como um pretexto para revisitar momentos marcantes do percurso de um dos mais relevantes escultores da atualidade. No período inicial da sua produção, e em particular no contexto das primeiras individuais organizadas pela Galeria LEO (1986 e 1987) e pelo Espaço Poligrupo / Renascença (1988), ambas em Lisboa, destacam-se as instalações temporárias realizadas com materiais banais e perecíveis, como o platex, ripas de madeira, troncos e canas. Estes trabalhos já anunciavam um dos aspetos centrais do que viria a ser a sua obra escultórica: a relação entre escultura, espaço e corpo. A partir de então dedica-se ao uso exclusivo do ferro, que posteriormente é polido e pintado a negro mate, fazendo desaparecer os vestígios e marcas da execução. Rui Chafes martela, solda e combina placas de ferro para criar famílias de objetos enigmáticos e misteriosos que, parafraseando o artista, são sombras ou uma espécie de negativo do mundo que encarcera e aprisiona o vazio, o silêncio absoluto: casulos, ninhos, insetos, couraças, máscaras ou peças de vestuário representam simultaneamente uma memória e uma pele que protegem e anunciam um corpo ausente.

Cobrindo mais de três décadas de atividade, a exposição inclui trabalhos da fase inicial da sua produção escultórica e um conjunto de obras especificamente pensadas para o Museu e Parque de Serralves. O título remete para a noção de ciclicidade do tempo, da repetição infinda de acontecimentos, lembrando que todos estamos sujeitos a esta circularidade, à vertigem abissal do eterno retorno. Do seu enunciado à sua materialização, este grupo de peças sugere sensações de estranhamento, tensão e angústia. Incisões que ferem e abalam as nossas crenças e certezas existenciais. No interior do edifício podemos encontrar uma sequência de momentos e ambientes, instalações tão mentais quanto sensoriais que colocam o corpo do espectador em confronto com o espaço e as obras e, em última instância, consigo mesmo. A exposição convoca conceitos e dualidades muito presentes na obra do artista, tais como, silêncio-vazio, presença- -ausência, escuro-frio, dor-sofrimento, pausa-movimento, memória-tempo, vida-morte.

“Sudário”, uma escultura de 2018 cujo título evoca a mortalha que envolveu o Corpo de Cristo, é a peça que primeiro recebe os visitantes. Suspensa no corredor, a poética espiritual e mística desta obra funciona como prólogo e epílogo. Uma vez na primeira sala, somos engolidos por uma escuridão profunda à medida que o silêncio e o vazio se impõem. Depois de uns minutos, quando os olhos se habituam, identificamos a presença espetral de cinco esculturas que pairam no ar como vultos de objetos cortantes. A partir daí, a exposição apresenta-nos um conjunto de obras significativas no percurso de Rui Chafes, nomeadamente “Burning In a Forbidden Sea”, acompanhada por uma composição sonora e texto da artista irlandesa Orla Barry que nos transporta para o ambiente de uma melodia mântrica ou ritual, uma evocação de práticas ancestrais que conjuga escultura, som e palavra. O diálogo e interação entre corpo, obras e espaço está também presente nas esculturas de menores dimensões, como as obras da série Cristal — máscaras que constrangem, enclausuram e torturam o corpo.

No hall do Museu, uma sequência de mais de vinte esculturas pertencentes à série Balthazar recorda-nos a paixão que o artista nutre pelo cinema, neste caso uma alusão a “Au Hasard Balthazar”, um dos filmes mais aclamados do cineasta francês Robert Bresson, que conta a história de um burro desde a sua infância bucólica, numa pacata aldeia dos Pirenéus, até à idade adulta como animal de carga oprimido. A obra recorda-nos os acessórios de equitação, entre eles cabeçadas e rédeas, dispostos em fileira como troféus numa alusão à nossa própria condição humana. A exposição prossegue nos jardins de Serralves, um passeio pelo Parque e pela carreira do artista que apresenta esculturas de diferentes períodos e outras criadas especificamente para este contexto — como é o caso de “Chegar Sem Partir”, a escultura de 6 metros que dá título à exposição. Neste caso, o artista cria a ilusão de um movimento de rotação, um vórtice centrípeto que propõe conceitos aparentemente dicotómicos: peso e solidez, fluidez e leveza. A obra teve como ponto de partida uma gravura do pintor e gravador japonês Katsushika Hokusai, na qual um grupo de viajantes é atingido por uma rajada repentina de vento, que leva chapéus e papéis pelos ares. Outra obra concebida para os jardins de Serralves, “Tu e Eu”, encontra afinidade com uma peça anterior, atualmente no Museu de Arte Contemporânea de Roma, e consiste em dois elementos verticais, de oito metros de altura encostados num improvável equilíbrio que nos lembra as varas de ferro sustentadas por bolas de golfe patentes no corredor do Museu.

Das obras instaladas nos jardins de Serralves, relevam-se ainda as peças “Comer o Coração” — que teve origem numa parceria entre o artista e a coreógrafa e bailarina Vera Mantero no âmbito da 26.ª Bienal de São Paulo (2004), um trabalho que convoca uma negociação entre escultura, corpo e performance e tem a Casa de Serralves como pano de fundo — e “Volúpia Prudente, Indómita Fome” que, totalmente camuflada nos jardins, envolve o tronco de uma árvore como uma armadura ou carapaça. Por último, no âmbito desta exposição, é inaugurada ainda uma escultura subterrânea intitulada “Travessia”, um projeto especialmente pensado para o Passeio da Levada que amplia a área de visitação do Parque. Evocando as ideias de peregrinação e de renovação mística, o artista convida-nos a percorrer um trilho sinuoso, um túnel escuro que termina numa câmara central iluminada por raios de luz natural que são até ali conduzidos por um óculo, e revelam uma escultura de formas orgânicas reminiscentes de um casulo em metamorfose. O artista convoca as relações entre arte, arquitetura e espiritualidade, templo e arquitetura, abrigo e refúgio, sagrado e profano, luz e trevas, misticidade e transcendência. Com a inauguração desta obra, Rui Chafes junta-se à lista de artistas com esculturas permanentes nos jardins do museu — uma coleção de arte contemporânea viva, em constante crescimento e atualização — entre as quais se destacam as obras de Alberto Carneiro e Richard Serra, nomes relevantes na formação do escultor português.


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