LIVRO: “Parede de Adobo”,
de António Canteiro
Edição | João Carlos Costa Cruz
Edição de autor, 2005
“Trago comigo o corpo pesado, o ar pesado, a voz pesada. A respiração ofegante, lenta. Estou cansado e a minha garganta já não me deixa falar depressa. As minhas cordas vocais estão lassas, gastas, e o som da minha voz está a esvair-se. A minha cabeça não ajuda e já não me deixa falar depressa. O fôlego não permite que eu fale, consecutivamente, sem parar. Não consigo dizer tudo de carreira, alinhado, seguido. Não consigo dizer tudo o que quero e como quero. Por isso faço pausas… (reticências) Respiro… (reticências) Depois, falo outra vez. Corto as ideias a meio das palavras, retalho as frases. No intervalo de um fôlego, enquanto aguento, deixo espaços livres, (entre vírgulas), espaços em branco, à espera das palavras seguintes, que nascem lentamente, aparecem… e, às vezes, desaparecem.”
No regresso a António Canteiro e à sua escrita, os momentos de emoção e de puro prazer voltam a preencher-me por completo. Por estes dias, a atenção recaiu sobre “Parede de Adobo”, romance de estreia datado de 2005 e que acaba de conhecer uma muito saudada reedição. Nele se prefigura toda uma obra de forte pendor romântico, com um vocabulário rico a ritmar uma trama engenhosa, laboriosamente modelada, poesia vertida em prosa que voltará a impressionar nos livros subsequentes, muito particularmente nessas duas pérolas que são “A Luz Vem das Pedras” e “Vamos Então Falar de Árvores”. É a paisagem gandaresa que convoca o nosso olhar e que regressará, em simplicidade e beleza, a cada novo livro. São as gentes e os ambientes de aldeia a emergirem com a força da sua verdade, descritos com a paixão de quem tem, por desígnio, recuperar histórias e preservar memórias particularmente queridas.
Areia, cal, água, palha. Juntem-se os ingredientes nas proporções certas, amassem-se com esforço e muito trabalho, modelem-se e levem-se ao forno e veremos como se transformam em adobos, material de que eram feitos os muros e as casas gandaresas. Serão estes adobos o ponto de partida do romance, metáforas de um corpo outrora sólido, erodido pela acção dos elementos, incapaz de resistir aos castigos a que se sujeita. Porque é do tempo que “Parede de Adobo” nos fala, das marcas deixadas nas gentes pela sua lenta passagem. Gente simples, que entre o viver e o morrer nada mais conhece a não ser trabalho. Gente que, depois de rezar o terço, se senta à volta do borralho e tem no calor brando o seu único afago. Que à falta de riquezas maiores, procura deixar às gerações vindouras os seus valores e convicções, os seus ofícios, a sua arte. E que, na sucessão de dias que precedem a noite eterna, está segura de que “hoje é amanhã”.
Porque alguém disse que “os silêncios de Mozart ainda são Mozart”, escutemos os silêncios destes lugares e destas gentes. É comovente a forma como António Canteiro nos abre as portas das casas humildes e nos faz pousar o olhar numa lareira com trempe ao lume sobre a qual fervilha uma panela de sopa, nas paredes escuras de fumo, “os pratos na cantareira, alinhados do avesso, inclinados, a evitar o pó.” Ou nos pede que percorramos os areais da Praia de Mira ao encontro de José Areias e Maria Águas, “Maria, grande, Maria, branca. Debaixo das sobrancelhas, duas fontes de luz, uma luz cristalina, pura, a dizer-me: anda cá, vem comigo. Sempre tão frágil, tão doce, e eu ia.” Entre o embalo de uma criança ao colo do pai e a forma como, muitos anos passados, esse afago é retribuído, vai um tempo de dificuldades inescrutáveis, de sonhos desfeitos, de distâncias agravadas, de desesperança e conformismo, de sombras e silêncios, de punhos cerrados e gritos surdos. Vai o tempo de uma vida.
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