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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #65



CINEMA: Shortcutz Ovar Sessão #65
Escola de Artes e Ofícios
90 Minutos | Maiores de 14 anos
27 Out 2022 | qui | 21:30


Em plena recta final, a sexta temporada do Shortcutz Ovar conheceu, na noite de ontem, a sua penúltima sessão. Com a bonita sala espande da Escola de Artes e Ofícios praticamente esgotada, as três propostas de cinema curto que preencheram o programa mostraram-se coincidentes no propósito de perturbar o espectador, ou não estivéssemos nós em véspera de Halloween e não fosse esta uma sessão que, por tradição, procura ir ao encontro do que de melhor se faz dentro de portas nos domínios do fantástico e do terror. Antes, porém, uma nota para a estreia de uma nova tela, maior em tamanho, mais consonante com o interesse e valor dos filmes que por aqui são exibidos desde o início de 2020 e que vem dar resposta, de forma cabal, ao gosto e às exigências de um público entusiasta e fiel. O passo em frente que esta melhoria das condições de projecção representa faz com que seja da mais elementar justiça render à equipa da Ovar/Cultura um forte aplauso, por manter um extraordinário dinamismo na programação e implementação de eventos no Concelho e por fazer com que as coisas aconteçam, mas que aconteçam com qualidade.

Escrito, produzido e realizado por José Mira, “Meu Castelo, Minha Casa” foi a primeira curta exibida e, através dela, acompanhamos Guilherme, um tenista adolescente que, fruto das pressões que lhe são impostas pelo seu treinador, começa a assistir a uma estranha transformação no seu corpo, ao mesmo tempo que é assombrado por bizarras criaturas mutantes. Envolto numa espiral de ansiedade e terror que se adensa a cada momento, busca na figura da mãe o tão necessário refúgio, mas encontra-a ausente e incapaz de o ajudar a acabar com o seu tormento. “Meu Castelo, Minha Casa” presta-se a uma multiplicidade de interpretações, como ficou bem patente na animada discussão com o público que se seguiu à projecção do filme. Buscando inspiração nas próprias memórias, José Mira terá querido chamar a atenção para a forma como muitas crianças são empurradas pelos próprios pais para um conjunto de obrigações que não escolheram, que detestam e que acabam por transformar a sua vida num verdadeiro tormento. Mas não é de descartar que, a esta mensagem de crítica social, se juntem também a bruxaria e o sobrenatural, a solidão e o autismo, o sofrimento e a morte, o todo temperado com uma pitada de David Cronenberg e mergulhado em ambientes que nos trazem à memória “Voando Sobre Um Ninho de Cucos”, a obra-prima de Milos Forman.

Rodado nos Estados Unidos pela dupla Lucas Elliot Eberl e Edgar Morais, “We Won’t Forget” arrasta-nos para uma festa em casa de uma mulher que, em determinado momento, decide libertar-se das suas tarefas enquanto anfitriã e assumir um conjunto de atitudes provocatórias e distorcidas da realidade. Se o comportamento da mulher é induzido ou não pelo álcool ou pelas drogas é algo que não chegaremos a saber. Sabemos, isso sim, que a profunda perturbação mental desta mulher é acompanhada de forma díspar pelos presentes, uns mais preocupados com as consequências de tão estranho comportamento, outros denotando desprezo ou indiferença pela situação, todos assumindo uma atitude iminentemente voyeurística, consubstanciada num irreprimível uso do telemóvel para filmar as cenas e partilhá-las com os seus seguidores. Cru e profundamente perturbador, este drama psicológico encerra um olhar implacável sobre a forma como a privacidade de cada um é invadida e a respectiva imagem pode rapidamente espalhar-se de forma gratuita nas redes sociais, sem que daí advenham consequências aparentes para os abusadores. Enquanto espectador e voyeur por excelência, o público é tomado pelo desconforto desde o início do filme, de repente sentindo-se como parte da trama e obrigado a tomar partidos. Uma palavra de apreço para o trabalho de Whitney Able, extraordinariamente convincente num papel de enorme exigência, ela que é co-autora do argumento, juntamente com os dois realizadores.

Carregado de humor negro, “Nada Nas Mãos”, de Paolo Marinou-Blanco, fechou da melhor forma esta 65ª sessão do Shortcutz Ovar. História de um agente funerário dado a depressões, alguém que anda morto por morrer e procura aconselhamento quanto à melhor forma de o fazer, preferencialmente sem dor, o filme assume-se como uma catarse face ao desconhecido e aos tabus que a morte encerra. Nesta comédia de Paolo Marinou-Blanco, fica bem patente a crítica aos grupos de aconselhamento, à literatura de cordel carregada de mensagens inspiradoras ou de reflexão, às terapias baseadas na meditação e mesmo ao negócio assente na prática da eutanásia e do suicídio assistido. Entre o trágico e o cómico, o pungente e o ridículo, “Nada Nas Mãos” é também a demonstração de que o riso pode ser uma forma de coragem, um meio tão adequado como qualquer outro para lidar com as adversidades. Assente numa interpretação de enorme qualidade de duas figuras maiores do nosso teatro, Dinarte Branco e António Durães, o filme tem ainda em “I'm On My Way”, um tema da Mahalia Jackson, uma lufada de ar fresco que sublinha esta visão irónica sobre o mundo dos vivos. “Nada Nas Mãos” revelou-se a escolha acertada para encerrar a noite, ao mesmo tempo abrindo-a a um assertivo e autêntico brinde à vida.

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