Com o rock puro e duro dos Twist Connection, chegou ao fim a terceira edição do Ovar Expande. Uma edição que, recorde-se, marcou um ponto de viragem na filosofia de um certame que começou por se assumir como a forma possível de resposta aos constrangimentos causados pela pandemia e surge, enfim, “desconfinado”, apostando em mais artistas e mais concertos, em mais salas e numa programação paralela capaz conferir ao todo o carácter de um verdadeiro festival. Aposta feita, aposta ganha, Ovar junta mais um produto de qualidade a uma oferta cultural que não cessa de crescer, revelando talentos e seduzindo o público. Entre a programação paralela, vale a pena começar por falar na iniciativa que deu o pontapé de saída deste último dia de programação do Ovar Expande e que juntou à conversa João Martins e Surma, sob a moderação deste que escreve estas linhas. Leve e descontraído, o momento permitiu conhecer um pouco melhor estes dois excelentes artistas, mostrando haver entre eles mais pontos de contacto do que seria de supor. A começar pela bateria - ponto de chegada para João Martins; ponto de partida para Surma -, com o rol de histórias e memórias que o instrumento convocou.
Banda de Coimbra formada por Carlos “Kaló” Mendes na bateria e voz, Samuel Silva na guitarra e Sérgio Cardoso no baixo, os Twist Connection puseram um ponto final no Ovar Expande. Ligados os instrumentos ao amplificador, a música espalhou-se a uma velocidade vertiginosa, fluindo com a mesma espontaneidade com que vi o público levantar-se das cadeiras e deixar-se ir numa onda feita de soul e blues, de algum punk e muito rock. Fiéis à sua própria identidade, os Twist Connection animaram a plateia com um conjunto de temas extraídos em grande parte de “Anywhere But Here”, o seu mais recente trabalho, fechando da melhor forma um festival que teve na variedade das propostas um dos seus maiores trunfos. A equilibrar as coisas, Madalena Palmeirim ofereceu-nos uma música doce e delicada, em grande medida feita de ritmos quentes de paragens atlânticas, com as mornas e o crioulo de Cabo Verde a impregnarem temas como “M ‘Câ Sabê”, “Lembrança di Nha Cretcheu” e “Teus Braços de Embalar”. No ouvido ficaram também “Right as Rain”, que dá o nome ao disco de estreia da artista, “Limbo” e essa extraordinária balada que é “Farewell”. Uma palavra para Manuel Dordio que, na guitarra, foi um acompanhante de luxo de Madalena Palmeirim, e, ainda, para “Morna Mansa”, o tema que fechou o concerto e que dará título ao segundo álbum da artista.
Em “horário nobre”, Surma trouxe-nos a sua música e a sua voz, lançada num idioma imaginário ao qual a artista gosta de chamar “surmês”. Com a saída de “Alla”, o seu segundo trabalho de estúdio, prometido para o início do próximo mês, seria de esperar o levantar da ponta do véu, por pouquinho que fosse. Tal não aconteceu e a artista focou-se exclusivamente no aclamado “Antwerpen”, o álbum de estreia, revisitando temas verdadeiramente icónicos como o elegante “Hemma”, o árido “Saag”, o intimista “Nyika”, o festivo “Drög” ou o tribal “Voyager”. Tal como tive oportunidade de dizer durante a tarde, na conversa acima referida, na música de Surma escuta-se a surda e lenta agonia de um glaciar, o mar a desfazer-se de encontro às rochas, o nevoeiro que envolve a floresta, o murmúrio gutural da primeira palavra alguma vez proferida pelo Homem, a chuva incessante que cai sobre um tapete de folhas mortas ou os sons que, vindos do espaço, nos dizem que a vida não é exclusiva deste planeta cada vez menos azul. Percorrendo paisagens sonoras fascinantes e arrebatadoras, o público mostrou-se permeável à viagem e ao sonho, rendendo à artista o seu aplauso e a sua gratidão. E agora que venha “Alla” - que quer dizer “todos”, em sueco -, para que todos possamos voltar a escutá-la e a aplaudi-la.
[Foto: Ovar/Cultura | https://www.facebook.com/ovarcultura]
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